Luciana Bugni

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Opinião

Alerta perrengue: a Virada Cultural mudou ou a gente que virou outra coisa?

O fotógrafo Mastrângelo Reino tem uma foto clássica em um show dos Racionais em uma Virada Cultural que virou caos policial —uma rajada de fogo saindo de uma metralhadora em direção ao público. O clique me causou agonia na segunda-feira seguinte, quando vi a foto no jornal em que trabalhávamos. Eu nunca vi confusão em Virada Cultural.

Eu não estava no show. Por anos, vagava pelo centro nos fins de maio, caçando eventos culturais que me interessavam entre a imensidão de oferta das 24 horas do evento, que dura até hoje. Zélia Duncan em uma manhã de domingo que, para mim, ainda era noite de sábado. Gal Costa. D2. Jorge Ben. Orquestra Imperial ainda com Wilson das Neves. Luiz Melodia. Fafá. Francis Hime aproveitando para também mandar lembranças. Elza e Gaby Amarantos. Até Valeska Popozuda e seu beijo no ombro eu vi —com minha mãe, no Arouche, sob chuva de granizo.

Viradas Culturais paulistanas eram, para mim, sempre surpreendentes. Acumulava histórias do improvável. Eram grandes noites, um suplemento de jornal todo circulado e a maravilhosa experiência de varar a madrugada no centro da cidade sem o medo que costumava sentir nas madrugadas ordinárias. Em grandes grupos, mesmo na multidão, nada parecia tão arriscado.

É andando que a gente descobre que estações de metrô de cores diferentes são vizinhas. Isso, para quem não nasceu na capital, é mágico. Prédios históricos. Artistas mitológicos. Gente. De todo tipo, para todo lado. Que beleza. Não consigo identificar o que mudou na última década. A tentativa de pulverizar o evento para as periferias? Talvez.

Caetano Veloso canta com o cortejo do bloco Tarado Ni Você na rua da Consolação, durante a Virada Cultural
Caetano Veloso canta com o cortejo do bloco Tarado Ni Você na rua da Consolação, durante a Virada Cultural Imagem: Marlene Bergamo/FolhaPress

Hoje, mais uma vez, tem mais uma Virada Cultural —em 21 palcos, não sei quantas atrações e quase incontáveis iniciativas culturais na cidade. Ela, a Virada, está viva. Eu, bem menos. Troquei a coragem de adentrar madrugadas por um celular caro, que leva minha vida dentro. Um filho pequeno que "não pode enfrentar situações de perigo". Entre se divertir como antigamente apesar do medo do risco lá fora, fico com meu sofá e a nostalgia de tempos mais livres. Cadê meu pique?

No máximo, como alguns anos atrás, Beatles para Crianças, no Butantã, palco afastado do centro, de manhã. O perrengue imaginado deixou de ser uma opção. Mas nunca foi perrengue! Nada aconteceu com a virada —porém, o que virei eu?

Envelhecer é engraçado. A gente sabe o que está perdendo. Sabe que seria bom não perder. Mas usa o cansaço de crachá e sequer se permite imaginar como seria encarar o lá fora como antigamente. Atravessei a Dutra dia desses para ver Lady Gaga com mais de 2 milhões de pessoas e fico feliz cada vez que lembro de que fiz isso. Por que não encarar a linha amarela de ponta a ponta nessa madrugada? Talvez eu tenha duas personalidades diferentes e a carioca é um pouco mais animada.

Recentemente, o jogador Kaká disse em uma entrevista para a revista Velvet que os gols mais bonitos que fez na carreira foram na juventude, quando não calculava os riscos. Quando descobria a confusão no show pelo jornal do dia seguinte? Nessa onda eterna de antever problemas para evitá-los, a gente perde um tantão de vida.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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