'Seus Amigos e Vizinhos' e as consequências de dar valor demais ao dinheiro

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"É preciso pedir a Deus para livrar-nos da má hora", dizia minha avó, que deve ter ouvido da mãe dela —não sei há quantas gerações o catolicismo entrou na vida de minhas ancestrais que atendiam pelo sobrenome "de Jesus".
A frase, mesmo se excluído o caráter religioso, explica as guinadas que acontecem nas nossas vidas. Encruzilhadas que parecem insignificantes e transformam completamente o desfecho de situações. E se você não tivesse caído no xaveco daquele cara bonitinho que se mostrou violento meses depois? E se você não tivesse pedido demissão do trabalho estável para ir para o emprego promissor em uma empresa que faliu logo em seguida? E se você tivesse ligado na véspera da morte de um amigo e isso o tivesse impedido de colocar a vida em risco? A má hora, eu aprendi, era algo do que deveria fugir. Ando falhando há quatro décadas.
A série da Apple "Seus Amigos e Vizinhos" começa exatamente assim: Coop (John Hamm, brilhante) acorda em uma poça de sangue que não é seu e, sim, do cadáver que jaz ao seu lado. Ele está questionando as decisões que o levaram até ali. Sabe que não deveria ter entrado naquela casa. Escorregar no sangue e cair na piscina da residência, de roupa, não ajuda se a ideia é não se incriminar. "Naquele momento foi impossível não ter um vislumbre de relance do desastre que era minha vida e me perguntar como tudo pôde dar tão errado tão rápido. Eis o que acontece", ele avisa.
Quatro meses antes, ele está elegante, sozinho em um bar. Uma moça o aborda. Ele explica que foi casado por 18 anos, está recém-solteiro e é, provavelmente, muito velho para ela, que tem 28 anos. Ele entende que a maioria dos rapazes da idade dela são idiotas (desculpe, rapazes, ele está certo). Também entende que os garotos narcisistas estão despreparados para mulheres como ela —na conversa e na cama.
"Em comparação, um homem da minha idade parece o antídoto perfeito. Sou atencioso, sábio, mais homem, seja lá o que isso significa. Você tem 28 anos, é 20 anos mais nova que eu. Nesse momento, isso dá certo. Tenho grana, você, liberdade. Podemos viajar e aprender coisas. Você vai me achar interessante porque tenho duas décadas a mais de histórias, e vou te achar interessante porque vive a vida no momento, com o imediatismo imprudente que perdi há um bilhão de anos. Então, um vai entreter o outro. E isso vai dar certo por um tempo, certo?", ele inicia antes de tentar dar o fora mais bem dado do audiovisual, aquele que explica, em um fast foward dos próximos 20 anos, como acabam as paixões. Sabemos.
Apesar de Coop ser rico (muito rico), há algo nele que lembra nossas próprias vidas na maturidade. Depois de tanto esforço para conquistar o que queria financeiramente, sobra uma conta bancária avantajada (às vezes nem isso) e o que mais? "Ninguém nunca mais vai transar com você como a sua namorada transava naquele apartamento horroroso do centro. Nem ela."
A crise de meia idade de Coop é cheia de verdades duras de digerir —por isso passamos praticamente a segunda metade da vida mastigando o que já percebeu, mas não engole.
Eu só descrevi os primeiros 5 minutos da série, cujo último episódio foi lançado na última sexta-feira. A lagoa de sangue em que ele se vê dá sequência a quase dez horas da complexa relação entre pessoas quando se dá ao dinheiro mais valor do que ele vale. Transar com o melhor amigo do marido não é boa ideia. Usar drogas pesadas antes do show mais importante de seu colégio também não é. Fazer serenatas no quintal de seu ex casado não é boa tática de conquista. Roubar obras de arte é uma péssima saída, aliás —caso vocês estejam pensando nisso.
As más horas que minhas ancestrais procuravam evitar permeiam a derrocada efeito borboleta. Coop segue seguro, como no fora que tentou dar na moça no bar. Ele já viveu quase 50 anos. Sabe tudo o que acontece quando você erra. E é justamente esse desprendimento que o move a errar mais. Assim, talvez só assim, ele possa se sentir vivo.
Talvez, não sei se minha avó sabia, livrar-se da má hora seja uma missão impossível. O legal é construir a vida entre (e apesar de) nossos erros. E entre (e apesar de) nossos amigos e vizinhos.
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