Lúcia Helena

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Reportagem

Inflamação do intestino: novo tratamento para retocolite e doença de Crohn

Difícil dizer qual dos males seria o menor. Será que seria sentir dor abdominal quase o tempo inteiro e um cansaço igualmente sem fim, perdendo apetite e peso, com febre e intestino solto de vez em quando? Esse pacote ainda carrega, com frequência, a ameaça de estreitar demais a passagem dos alimentos em algum trecho do trato digestivo e criar fístulas, isto é, ligações anormais com outras partes, além de aderências capazes de levar a pessoa para uma mesa de operação. Está, aqui, uma descrição muito por alto da doença de Cronh.

Ou será que menos mal seria — além da fadiga constante, da perda de peso e de apetite — viver correndo na direção do banheiro mais próximo oito, dez, quinze vezes por dia por causa de episódios de diarreia que, ainda por cima, é acompanhada de sangue? Só quem tem retocolite ulcerativa sabe que inferno é esse!

O nome já diz tudo: surgem verdadeiras feridas ou úlceras no reto que vão avançando para o alto, alcançando o cólon. "A retocolite se restringe a essas duas porções finais do intestino, enquanto a doença de Crohn pode se manifestar em partes diferentes do trato da digestão, da boca até o reto", conta o o cirurgião e gastroenterologista Alexander Rolim, que começou a lidar com essa dupla há mais de duas décadas. Professor do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, ele assina dezenas de pesquisas sobre essas duas doenças inflamatórias intestinais.

Antes que eu pense que a maior diferença entre elas seria uma questão de localização e sintomas, ele acrescenta o que acontece na intimidade intestinal: "Na doença de Crohn, se a gente examinar a parede intestino, verá que a inflamação atinge todas as suas camadas. Já na retocolite, ela acontece apenas na mais superficial delas."

No passado, médicos como ele tratavam o paciente somente naquelas horas em que o bicho pegava, no meio de uma crise. No entanto, de uns tempos para cá, o objetivo é controlar ao máximo incêndio da inflamação para deixar o intestino em paz e a doença, em remissão.

As armas para isso também foram mudando ao longo dos últimos tempos. "Até os anos 1990, contávamos apenas com corticoides prescritos nas crises agudas", relembra Alexander Rolim. Só que, na prática, quem tem uma doença inflamatória intestinal pode viver pulando de uma crise para outra, acabando por usar a medicação por períodos prolongados e pegando um preço por isso. "Já vi um rapaz de seus 20 anos que usava corticoides desde os 12. Resultado: apesar de jovem, estava com todos os ossos frágeis, acometidos por osteoporose, além de catarata nos dois olhos", ele conta.

Na mesma década, os médicos também resolveram lançar mão de imunossupressores para aplacar a fúria das células imunológicas disparando inflamações no intestino. Só a partir de 2000, o tratamento entrou na era dos famosos imunobiológicos, que a rigor seriam capazes de regular essas reações. Mas a realidade é literalmente de doer para muita gente com uma doença inflamatória intestinal: "Aproximadamente um terço dos pacientes não responde ao tratamento mesmo assim", lamenta informar o professor Rolim.

É para esse grupo, principalmente, que surge uma bela esperança. O nome dela não é dos mais simples: guselcumabe. No finalzinho do ano passado, esse tratamento foi aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para para quem retocolite ulcerativa de moderada a grave. E, agora em março, nossa agência regulatória também o aprovou para pessoas com doença de Crohn modera ou gravemente ativa, isto é, sem dar trégua.

Com isso, o guselcumabe passa a ser incluído no famoso rol da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), com a possibilidade de reembolso pelos planos de saúde. Já os usuários do SUS (Sistema Único de Saúde) terão de esperar a incorporação da novidade, condicionada a novas avaliações dos resultados de estudos — estudos que, por sinal, parecem muito positivos.

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Como age o novo tratamento

O guselcumabe é um anticorpo monoclonal. Ou seja, é um anticorpo criado em laboratório — no caso, da farmacêutica Johnson & Johnson. Feito um míssil teleguiado, ele vai direto ao encontro da interleucina-23 ou IL-23. Ela é uma molécula inflamatória produzida por determinadas células de defesa que, desse jeito, fica bloqueada. E, como é uma peça importante no dominó que culmina na inflamação, o bloqueio feito pelo anticorpo monoclonal interrompe esse processo.

Já existiam outras moléculas que agiam na mesmíssima IL-23. Por que, então, guselcumabe teria mais chance de sucesso? "Porque ele faz uma dupla ligação", diz o professor, para apagar a dúvida em minha cabeça. "Além de bloquear a própria interleucina 23, ele se encaixa em um receptor das células que liberam essa citocina, evitando sua produção." Ou seja, corta a brincadeira de vez.

No início, a pessoa recebe a terapia na veia, em três sessões mensais. Depois disso, ela mesma pode fazer a manutenção em casa, com aplicações subcutâneas a cada mês ou a cada dois meses, dependendo da dose estipulada pelo médico especialista. E isso, sem dúvida, facilita a vida.

Segundo os estudos, o guselcumabe é seguro. "Ele controla a inflamação reduzindo especificamente a ativação das células inflamatórias que estão mirando o intestino. Portanto, é um controle mais direcionado, que não atinge o sistema imunológico como um todo", explica o professor Rolim.

Aliás, a terapia já vinha sendo usada por pacientes com artrite reumatoide e com psoríase, doenças autoimunes que também têm forte envolvimento com a interleucina -23. Lá no fundo, todos esses problemas podem ter a mesma raiz. "Sabemos que indivíduos com doença de Crohn ou com retocolite ulcerativa podem ter psoríase associada", conta o doutor. A mesma associação vale para a artrite reumatoide.

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Nos meios científicos, há quem especule, sem haver concreta disso, que todos esses problemas seriam quase que a mesma condição, provocada pela interleucina-23 exacerbada, só que com manifestações diferentes entre si.

Diga-se que, entre a retocolite ulcerativa e a doença de Crohn, também existe uma zona cinzenta abrigando casos em que os médicos, mesmo aguçando o olhar, não conseguem saber se é uma coisa ou outra. "Conheci um paciente que tinha todas as características de retocolite e que, depois de operado, apresentou lesões de Crohn", relembra o professor para exemplificar.

O fato é que, para todos, calar a inflamação interrompendo a produção e a ativação da tal interleucina pode significar, finalmente, um conforto.

Alívio prolongado

Em um estudo denominado QUASAR, que acompanhou 701 pacientes adultos com retocolite ulcerativa por praticamente dois anos, 72% entraram em remissão clínica, ou seja, deixaram de ser tão atormentados por diarreias sanguinolentas e sustentaram esse estado. No final do período de 92 semanas, 84% também apresentaram melhora no exame de endoscopia. Portanto, mais do que ausência de crises graves, os médicos observaram menos lesões nas paredes intestinais.

Outro estudo, o ASTRO, que avaliou a eficácia das aplicações subcutâneas, confirmou a remissão a longo prazo. E os trabalhos com portadores da doença de Crohn também foram animadores, mostrando que o guselcumabe tem taxas de remissão superiores a outro anticorpo monoclonal usado nesses casos, chamado ustequinumabe.

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Melhora da qualidade de vida

Conseguir que mais gente tenha as doenças inflamatórias intestinais sob controle é crucial. Do ano 2000 para cá, assistimos a um salto em sua prevalência de 30 para 100 casos a cada 100 mil habitantes no Brasil.

Há quem afirme que o aumento no consumo de alimentos ultraprocessados seja o principal alavancador dos casos. "Ninguém sabe ao certo a causa dessas doenças", diz o professor Rolim "Provavelmente, elas apareceriam devido a uma mistura de fatores como genética, tabagismo, alterações na microbiota e, sem dúvida, a dieta rica em alimentos ultraprocessados."

Na maioria das vezes, a pessoa é pega de surpresa por uma doença inflamatória dessas entre os 36 e os 55 anos de idade, de acordo com dados brasileiros — entre nós, 58% dos pacientes são mulheres. Porém, tanto a doença de Crohn quanto a retocolite podem ser diagnosticadas desde a mais tenra idade, em bebês, até em senhoras e senhores septuagenários.

Segundo o professor Rolim, pesquisas apontam que 2 em cada 10 pacientes sofrem de transtornos de ansiedade e depressão, o que é fácil entender. E 95% relatam que deixam de trabalhar por causa do mal-estar provocado pela inflamação no intestino. Um estudo brasileiro, que analisou dados entre 2010 e 2014, mostra que, nesse período, pessoas com doenças inflamatórias intestinais ficaram de licença de afastamento do trabalho por 314 dias, em média.

Números assim são parte do drama e servem para a ilustrar a importância de a ciência encontrar novas terapias, como essa recém-aprovada, para devolver uma rotina normal a toda essa gente, com ânimo e sem dor de barriga.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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