Por que a avaliação do idoso ao chegar no pronto-socorro deveria mudar

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O roteiro na chegada a um pronto-socorro é manjado: um profissional de enfermagem mede a sua pressão, registra a sua frequência cardíaca, avalia como anda a oxigenação prendendo um aparelhinho na ponta do seu dedo, pega o termômetro para ver a sua temperatura e arremata checando se está com dor no peito, tontura ou outra pista de um infarto ou de um AVC, dois perrengues que levariam qualquer sujeito dali direto para a sala de emergência, sem escalas.
Assim, na fila dos atendimentos, dá para saber quem tem um caso mais grave ou urgente e quem é capaz de aturar longas esperas por apresentar condições razoavelmente simples, que não representam ameaça à vida. Mas essa triagem tradicional e — com o perdão do trocadilho — velha conhecida pode não funcionar tão bem para idosos. E, aí, falando especialmente daqueles que passaram dos 70 anos.
Quando as diferenças entre nós aumentam
Nos pronto-socorros, esse é um público cada vez mais numeroso. Faz sentido: já são mais de 33 milhões de brasileiros na terceira idade, o dobro do que existia há apenas duas décadas, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). E, por natureza, a saúde da população idosa dá mais sustos, que fazem a pessoa correr para um atendimento médico.
Só que, não é de hoje, o geriatra Pedro Curiati, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, observa que os sistemas de pronto atendimento são adequados para crianças e para adultos jovens ou, digamos, mais jovens que senhores e senhores septuagenários em diante. "Um dos pontos em que isso é sensível é justamente na avaliação do risco", afirma o doutor.
Aliás, ele não estava exatamente sozinho nessa constatação. Cinco sociedades médicas americanas tinham se reunido em 2014 para resolver essa história da triagem de idosos e, mesmo assim, uma revisão importante publicada um pouco depois mostrou que nenhum dos instrumentos disponíveis para avaliar esses pacientes na entrada dos pronto-socorros era muito confiável
Na faixa etária dos 20, 30, 40, 50 anos, o cenário é mais homogêneo: indivíduos saudáveis exibem sinais parecidos entre si e quem está com algum problema, idem. "No entanto, quanto mais idade as pessoas têm, mais diverso pode ser o estado de saúde. Existem indivíduos com 60 e poucos anos extremamente debilitados e gente com 80 e tantos anos extremamente independente. Isso faz com que os instrumentos tradicionais de triagem errem muito mais."
Em outras palavras, aquele roteiro na entrada do PS pode deixar passar batido alguém que está correndo o risco de não evoluir bem e até morrer. E atenção: sem importar a queixa que o levou até ali, que talvez até seja algo aparentemente banal.
Um escore de vulnerabilidade
Foi por isso que, em 2019, Curiati e seus colegas pensaram em criar uma ferramenta simples e rápida — ora, como deve ser tudo em um pronto-socorro — para ser aplicada na chegada do paciente. Batizada de Escore PRO-AGE, ela mostrou o seu valor, primeiro, no pronto atendimento geriátrico inaugurado no próprio Sírio-Libanês dois anos antes, em 2017. "Naquela época, já somávamos uma experiência de mais de 5 mil casos", relembra o médico.
Entre 2020 e 2021, em plena pandemia de covid-19, esse escore também foi testado com sucesso nos idosos atendidos no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo. "A etapa mais recente foi que procuramos alguns dos principais nomes da medicina de urgência dos Estados Unidos e eles aceitaram o desafio de avaliar o nosso escore em cinco hospitais americanos, apontando a mortalidade em 90 dias dos idosos entraram no serviço de saúde pela porta do pronto atendimento", conta o doutor Curiati.
O trabalho, recém-publicado na revista da American Geriatrics Society, reúne dados de 1.390 pacientes — 560 deles, americanos, e os demais, brasileiros. Aqueles 30% de indivíduos com pontuação mais alta — sim, quase 1/3 costuma ter pontuação bem alta — corriam um risco 12 vezes maior de ter complicações severas e morrer em menos de três meses do que aqueles com pontuação mais baixa.
"Desde o primeiro estudo a seu respeito, divulgado em 2020, a gente sabe que esse escore tem uma acurácia boa. Mas, no início, avaliamos apenas se ele apontaria a ameaça de a pessoa ficar hospitalizada por muito tempo e de morrer durante a internação", conta Curiati. Agora, o olhar se estendeu para os 90 dias seguintes.
O que esse escore traduz, afinal? "Ele revela a vulnerabilidade, os riscos relacionados às características de cada um. Ou seja, o que precisa mudar é deixar de olhar só para o problema que levou o idoso ao pronto-socorro e focar nele próprio também", pensa o geriatra.
Ser homem é um dos critérios
Os critérios desse escore deveriam ficar na nossa cabeça como uma pista do quanto pessoas mais velhas estão vulneráveis, ou não, diante de uma encrenca. "Independentemente da severidade de um quadro na chegada ao serviço de saúde, eles irão influenciar na trajetória do paciente", reforça Pedro Curiati
Ter mais de 90 anos é um dos tais critérios. E — lamento, rapazes — ser homem é um outro. Isso porque, segundo os médicos, os homens ainda têm mais problemas cardiovasculares do que as mulheres. Além disso, dá para supor que, ao longo da vida, tenham se cuidado menos. "Geralmente, as mulheres fazem pelo menos o acompanhamento ginecológico anual. Mas o menino, quando deixa de ir ao pediatra, talvez só volte a um consultório depois dos 50 anos. Ou seja, pode ter desenvolvido questões de saúde nesse meio-tempo de que nem desconfia." Essa possível lacuna deveria deixar os médicos ressabiados.
Perda de peso e fadiga
No escore, ganha pontos em direção à vulnerabilidade quem perdeu mais de 5% do peso no último ano. Claro, estamos falando de uma perda de peso involuntária e não a de quem fez um tratamento contra a obesidade. Ela é um parâmetro do que os médicos conhecem por fragilidade.
"A fragilidade engloba muito coisa, desde a diminuição da massa muscular e, consequentemente, de força para as demandas do dia a dia até a fadiga", define o geriatra. Aliás — bem lembrado! —, para preencher o escore, o responsável pela triagem no pronto-socorro deve perguntar se a pessoa anda se sentindo muito cansada nos últimos dias.
Vale aproveitar para esclarecer: a fragilidade na terceira idade é um conceito importante, diferente do senso comum que, ao ouvir esse termo, logo pensa em ossos que se quebram e músculos fracos. "Fragilidade é um estado de baixa reserva", prefere dizer o doutor Curiati.
Você já deve ter ouvido aquela história de que o organismo humano atinge o pico de todas as suas funções lá pela terceira década de vida. A partir daí, elas vão caindo devagar e sempre, sem ninguém se dar conta, porque temos uma boa poupança para gastar. "Mas, na fragilidade, estamos no limite de funcionamento dos sistemas e órgãos. Qualquer situação, a partir daí, fará com que manifestem doenças porque não têm mais capacidade para lidar com agressões e estressores", explica o médico.
Confusão mental e outros sinais
O escore valoriza sinais do que os médicos conhecem, em bom latim, por "delirium", um estado de confusão mental que pode aparecer em um idoso internado ou quando há algo de muito errado em seu organismo. "É uma disfunção do cérebro e ela indica uma evolução desfavorável", diz o doutor.
O que os criadores do PRO-AGE mostram é que, para desconfiar do delirium, não é preciso seguir as etapas de um diagnóstico completo dessa condição. Basta perguntar à pessoa — e, se for o caso, confirmar com o acompanhante — se ela se sente confusa. Mas não só isso!
Guarde porque é importante: no lugar de confuso, em um primeiro momento o idoso pode estar apenas mais sonolento ou mais agitado ou, ainda, mais agressivo. "Isso já é o suficiente para identificá-lo como uma pessoa que pode estar nas fases iniciais do delirium, o que merece toda a nossa cautela", afirma Pedro Curiati.
Hospitalizações recentes
Passagens por pronto-socorros e internações nos últimos seis meses valem pontos no escore criado pelo Sírio-Libanês. Isso, por si só, já é uma pista de uma saúde mais comprometida. Sem contar o seguinte: "Qualquer internação traz riscos ao idoso, desde feridas causadas pela menor mobilidade a infecções hospitalares. Tudo deve ser considerado até na decisão de interná-lo outra vez ou não", diz o doutor Curiati. "Muitas vezes, é melhor que o paciente idoso tome uma injeção diária de antibiótico em casa do que ficar internado para o tratamento contra alguma infecção. E essa decisão deveria ser tomada no pronto atendimento", assegura.
O médico lembra que seu pai, um conhecido professor de Geriatria, sempre repetia que seus pacientes eram graves demais para irem parar em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva), um lugar que envolve estresse combinado a medidas invasivas e dolorosas, capazes de escoar de vez aquela reserva do organismo. "Mas eu atualizei esse chavão paterno", brinca o doutor Pedro Curiati. "Meus pacientes que chegam pelo pronto-socorro geralmente são graves demais para eu internar, até mesmo no leito comum."
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