Lúcia Helena

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Reportagem

Monitorar glicose o tempo todo reduz infartos e outras ameaças ao coração

A pesquisa é fresquinha. Saiu na semana passada na revista da Associação Europeia para o Estudo do Diabetes e mostra o seguinte: o uso de um sistema de monitoramento contínuo de glicose foi capaz de reduzir em 62% o risco de internações por problemas cardiovasculares em pessoas com o tipo 1 dessa condição em relação aos pacientes que acompanhavam os níveis desse açúcar no sangue fazendo um furinho na ponta do dedo.

Na mesma comparação, olhando só para aqueles indivíduos que já tinham apresentado hipoglicemias graves antes, a diminuição nas hospitalizações era até maior, em torno de 78%. Os médicos consideram quadros graves quando a glicose disponível para o organismo despenca de tal maneira que não adianta simplesmente engolir um sachê dessa substância, tomar um suco de fruta para repô-la depressa ou comer um doce, sendo preciso voar para um pronto atendimento.

Ou seja, ao menos de acordo com esses resultados, o tal monitoramento contínuo parece aplacar de maneira significativa a ameaça de esses indivíduos terem infarto, derrame, angina, insuficiência cardíaca, arritmia, podendo morrer por causa de um desses perrengues.

Ora, a lembrança não é feliz, porém se faz necessária: quem tem diabetes, seja o tipo 1 ou o tipo 2, corre até quatro vezes mais perigo de passar por um susto desses. Aliás, entre essa gente, as doenças do coração são, de longe, a principal causa de morte.

Todos esses problemas cardiovasculares citados foram levados em conta pelos cientistas suecos da Universidade de Gotemburgo e do Instituto Karolinska, autores do trabalho recém-publicado. Eles se debruçaram sobre os dados do Swedish National Diabetes Register, um fabuloso banco com informações de saúde de 9 em cada 10 pessoas com diabetes em seu país.

O que é um sistema de monitoramento contínuo de glicose

Se você ainda não está ligando nome à tecnologia, um sistema para monitorar continuamente a glicose é aquele adesivo do tamanho aproximado de uma moeda de 1 real, geralmente colado no braço. Ele, na realidade, é um sensor, repleto de minúsculos filamentos que penetram na pele para medir a glicose presente no líquido entre as suas células, o chamado fluido intersticial.

É por isso que não dá para falar que o tal sensor monitora a glicemia, porque esse nome se refere à taxa de glicose em outro líquido, o sangue. Mas, seja como for, esse açúcar dá sopa em todos os cantos quando a pessoa tem diabetes, sem o empurrãozinho do hormônio insulina para colocá-lo no devido lugar, que seria no interior de cada célula, fornecendo energia para a gente viver.

Alguns sistemas medem a glicose continuamente de fato. Outros fazem medições no interstício a cada 15 minutos, criando gráficos da partir da linha traçada de um momento a outro. As informações, então, são transmitidas para um aplicativo, que pode ser instalado no celular do usuário.

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"Essa tecnologia é capaz de checar a tendência de uma hipoglicemia, por exemplo, em vez de apontá-la só no instante em que ela já está acontecendo", explica o cardiologista Andrei Spósito, professor titular da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). "Ou o contrário: pode mostrar que a glicose tende a subir demais, permitindo ajustes na alimentação ou na medicação antes disso."

Hipoglicemia e coração

A gente até tem ideia de que o excesso de glicose no sangue faz mal à saúde do coração, inclusive por danificar os vasos sanguíneos dia após dia. Afinal, é uma história sempre repetida por aí. Mas saiba: glicose de menos também coloca o peito em situação delicada. E, aí, o desastre pode acontecer depressa.

A falta desse combustível vital desencadeia diversas reações que, entre outros efeitos, causam palpitações. "Isso, às vezes, também pode soltar a plaquinha em uma artéria que, no músculo cardíaco, irá provocar uma obstrução, levando ao infarto", exemplifica o professor Spósito.

Ao seu ver, não há dúvida de que, para pacientes com diabetes tipo 1, o monitoramento contínuo de glicose pode ser uma ferramenta extremamente útil. "Neles, o pâncreas não produz insulina, que normalmente seria liberada conforme a necessidade do organismo a todo instante", relembra. "Portanto, é preciso fazer cálculos o tempo inteiro, tentando imitar esse processo fisiológico, considerando entre outros fatores os nutrientes de cada refeição para ajustar a reposição do hormônio."

Óbvio que o risco de errar as contas e sofrer uma crise de hipoglicemia sempre existe. Risco que, no caso, o monitoramento contínuo anteciparia, dando prazo para correções. Daí que, na opinião do professor, esse tipo de tecnologia pode ser igualmente útil para aqueles pacientes com diabetes tipo 2 que também já tiveram hipoglicemias graves. Neles, a insulina ainda é produzida, só que encontra dificultade para agir.

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"Mas será que existiria real vantagem em lançar mão de um sistema de monitoramento contínuo para proteger o coração desses pacientes?", o cardiologista levanta a questão. "Possivelmente. A grande questão é o custo dessa tecnologia, que continua sendo inacessível para muitos", observa ele, que também faz algumas considerações sobre a pesquisa recente.

Os estudos sobre a tecnologia de monitoramento

A pesquisa lançada na semana passada examinou o que tinha acontecido ao longo de dois anos com nada menos que 14.829 adultos com diabetes tipo 1. Vale notar que, nem faz tanto tempo assim, em janeiro deste ano, o mesmo grupo de cientistas suecos encontrou resultados parecidos em 2.876 pacientes com diabetes tipo 2. Esses indivíduos também tiveram redução no risco de hospitalização em decorrência de qualquer doença cardiovascular.

Uma das explicações para a quantidade menor de internações nas pessoas com diabetes tipo 2 é que, monitorando a glicose ininterruptamente, dá para saber durante quantas horas das 24 do dia ela ficou dentro da meta estabelecida pelos médicos.

Entenda: hoje a Medicina vem reconhecendo que, quanto mais tempo a pessoa fica com esse açúcar em equilíbrio, como aconteceria no organismo sem diabetes, melhor para a saúde. E obviamente não dá para fazer essa estimativa com uma gotinha de sangue em determinado momento, quero dizer, com uma medição isolada.

"Outro motivo é que não são apenas as hipoglicemias graves, mais comuns em pacientes com diabetes tipo 1, que causam prejuízos", nota Douglas Barbieri, diretor médico global da Divisão de Cuidados para Diabetes da Abbott. A empresa está entre as pioneiras na tecnologia de monitoramento contínuo de glicose e financiou a série de estudos chamada REFLECT, da qual tanto a pesquisa lançada na semana passada quanto aquela publicada no início do ano fazem parte.

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"Hipoglicemias leves vão causando não só complicações para o coração como danos neurológicos, capazes de impactar até mesmo na cognição", continua Barbieri, que é endocrinologista, sublinhando que os estudos da série REFLECT são os primeiros a demonstrar o impacto do monitoramento contínuo de glicose na saúde cardiovascular.

O médico pondera que, no início, a tecnologia de monitoramento dava a impressão de servir apenas para quem precisava de várias doses de insulina por dia e queria acertar em cheio na dose da reposição. "Agora, porém, surgem cada vez mais evidências de que ela pode ser importante para qualquer pessoa com diabetes viver longe de complicações, algo que os cardiologistas vêm descobrindo."

Uma ressalva do professor Andrei Spósito, porém, é que esses estudos não foram randomizados. O que ele quer dizer com isso: os pacientes não foram sorteados para uma parte usar a tecnologia de monitoramento contínuo e outra seguir furando a pontinha do dedo algumas vezes por dia para, a partir daí, ver o que aconteceria com cada turma.

Os autores olharam para o passado. Em bom "cientificês", fizeram estudos retrospectivos, comparando o que já tinha acontecido com pessoas que receberam glicosímetros convencionais — equipamento para o exame do furo no dedo — com pessoas que tiveram a prescrição de um dispositivo para monitoramento contínuo.

"Na Suécia, o sistema de saúde pode oferecer essa tecnologia em alguns casos e, como isso envolve custos que precisam ser justificados, não se pode descartar que os médicos tenham optado por indicá-la para aqueles pacientes que, em sua visão, seriam mais beneficiados", comenta o cardiologista da Unicamp. Sendo assim, haveria de cara uma tendência de os usuários desses sensores participantes dos estudos precisarem menos de hospital. Logo, a redução impressionante de internações seria em parte por causa disso.

O tempo dirá. Embora faça sentido, se a ideia é imitar o incrível trabalho de um organismo saudável, ficar de olho na glicose a cada minuto. O problema é que, por falar em tempo, parece que ainda teremos de esperar para que os 10% da nossa população com diabetes tenham acesso a esse possível benefício.

Reportagem

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