Nada de influencers e listas: o prazer de comer sem seguir roteiros alheios

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Já nem é preciso vasculhar as redes sociais de celebridades para descobrir onde elas costumam jantar ou sair para comer. Tornou-se comum encontrar em jornais e sites listas e guias que revelam os restaurantes frequentados por atores, modelos, empresários e, claro, chefs.
Na era do "influencerismo", em que pessoas mais ou menos relevantes em suas áreas parecem exercer um poder real sobre as escolhas do público, esse tipo de conteúdo virou tendência. "Descubra onde o chef beltrano come quando está em Londres"; "os japoneses preferidos da atriz da série do momento"; "os restaurantes onde sicrano janta com a família em Seul".
É verdade que essas listas podem render boas descobertas — locais fora do radar, projetos interessantes pouco cobertos pela mídia tradicional. Mas o que impressiona é a velocidade com que, de repente, não mais que de repente, parece que todo mundo virou especialista em onde comer na próxima viagem ou no jantar de sábado à noite.
A gastronomia, como fenômeno pop, alimentou esse movimento como poucas outras áreas o fizeram.
Ultimamente, saber quais restaurantes incluir no roteiro de Nova York se tornou um símbolo de status maior do que conhecer os últimos lançamentos da Broadway ou as exposições em cartaz no MoMA.
Basta publicar nos stories a foto de um restaurante para receber uma enxurrada de mensagens com recomendações imperativas: "VOCÊ TEM QUE IR!" — assim mesmo, em caixa alta, num tom quase autoritário.
Tudo bem que o chef beltrano possa ter boas sugestões. Mas gostar de sair para jantar não faz de alguém um especialista em indicar lugares para os outros.
E o pior: o fato de uma pessoa — especialista ou não — ter adorado um restaurante não garante que ele será imperdível para mim também.
Esse tipo de conteúdo costuma vir carregado de expectativas, o que pode tornar a experiência frustrante. Vamos em busca de viver o que o outro viveu — alguém que, muitas vezes, nem conhecemos —, sem deixar espaço para o encontro espontâneo com aquele lugar, com aquele prato, com a minha fome ou vontade de comer.
São cada vez mais comuns os casos de pessoas que vão a restaurantes e, ao invés de apontar o que querem comer no menu, abrem o celular na cara do garçom para mostrar um post alheio com uma foto do que estão ali para comer.
A algoritmização das experiências alheias é tão pungente que chegou aos meios de comunicação — cada vez mais se rendendo a uma linguagem das redes sociais para alcançar um público maior.
De grandes jornais a sites especializados, todos buscam as listas de onde comer dos atores do momento, das modelos, dos influencers de comida, num claro aceno aos SEO dos sites de busca para aplacar as escolhas fáceis (ou "sem erros") que essas recomendações representam.
Numa era em que cada escolha parece precisar de validação — seja do algoritmo, de um famoso ou de um amigo que "já foi" —, o risco de perder o prazer da descoberta é real.
Há também uma expectativa crescente de que cada ida a um restaurante seja uma "experiência". É preciso sempre um "storytelling envolvente", apresentações surpreendentes e, claro, ângulos perfeitos para as redes sociais.
Isso cria uma ansiedade em torno do ato de comer, como se fosse sempre necessário justificar a escolha com algum tipo de grandiosidade. Mas nem toda boa refeição precisa ser inesquecível.
Em vez de seguir o roteiro já mapeado das redes sociais e dos conteúdos de listas, há algo quase libertador em entrar num restaurante desconhecido, sentar sem saber o que esperar e deixar-se surpreender. Afinal, foi assim que muitos dos grandes encontros gastronômicos aconteceram: por acaso, por intuição, por erro ou, às vezes, por pura sorte.
Ao depender cada vez mais de recomendações filtradas por curadorias alheias, deixamos de exercitar o nosso próprio apetite — no sentido literal e figurado.
Reduzimos uma refeição a uma reprodução de imagens e sensações que não são nossas, como se o ato de comer fosse apenas mais um item numa lista de validações sociais.
Mas a comida não é apenas consumo: é também contexto, estado de espírito, memória e disposição. Um restaurante pode ter sido perfeito para alguém numa noite de verão com amigos e parecer absolutamente banal para outro numa terça-feira chuvosa.
Deixar-se levar pela surpresa, pelo acaso e até pela possibilidade de errar é também uma forma de recuperar o prazer mais genuíno da gastronomia: o de explorar com os próprios sentidos.
Entrar num restaurante só porque o cheiro na rua era bom. Pedir um prato cujo nome nem se sabe pronunciar. Comer algo que nunca se viu antes.
Confiar na opinião alheia — ou nas seleções automatizadas por ferramentas de IA como o ChatGPT — pode, sem dúvida, tornar a busca pelo próximo restaurante mais prática. Mas isso não significa, necessariamente, uma experiência mais saborosa — ou menos sujeita à frustração.
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