Rafael Tonon

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Opinião

A queda de uma estrela: o caso Oteque e o peso das estrelas Michelin

Entre as muitas notícias — boas e ruins — da recente edição do Guia Michelin 2025, realizada esta semana em São Paulo, a que mais repercutiu nas redes sociais e nas conversas de bastidores foi o fato de o Brasil ter perdido uma estrela.

No caso, o restaurante Oteque, do Rio de Janeiro, caiu de duas para uma estrela Michelin, juntando-se a outros 19 estabelecimentos que figuram na primeira categoria do influente guia francês — cujas cotações variam de uma a três estrelas, sendo que nenhum restaurante brasileiro possui, até hoje, a nota máxima.

Embora, para muitos, o nome Michelin remeta apenas à famosa marca de pneus, para alguns chefs, o reconhecimento do guia representa a maior conquista de suas carreiras.

Desde que a empresa francesa lançou seu icônico guia de capa vermelha — com o objetivo inicial de incentivar as pessoas a pegarem a estrada (e gastarem pneus) em busca de boa comida — o universo da gastronomia nunca mais foi o mesmo.

Por isso, a premiação anual é cercada de ansiedade e expectativas, em uma profissão já marcada por pressão constante. Subir ao palco para receber estrelas é o sonho de muitos; perdê-las, por outro lado, pode se tornar um verdadeiro pesadelo para outros.

Há casos de chefs que enfrentaram sérios problemas de saúde mental ao lidar com a perda de reconhecimento em rankings, listas e guias. O Michelin tem colecionado histórias emblemáticas nesse sentido.

O renomado chef francês Marc Veyrat, por exemplo, conquistou ao longo da carreira nove estrelas e comandou três restaurantes que atingiram a cobiçada classificação máxima do guia.

Mas seu nome se tornou ainda mais conhecido por sua relação conturbada com o Michelin, especialmente após o rebaixamento do La Maison des Bois, que caiu de três para duas estrelas em 2019.

Inconformado, o chef entrou com um processo judicial contra o guia, alegando um mal-entendido sobre os motivos da decisão. Em 2025, proibiu os inspetores do Michelin de avaliarem seu novo restaurante, Le Restaurant Marc Veyrat, em Megève.

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A relação entre pressão psicológica e a perda de reconhecimento no guia ganhou o centro do debate após os suicídios dos chefs Benoît Violier (2016) e Bernard Loiseau (2003), ambos detentores de estrelas Michelin.

Amigos e colegas sugeriram, na época, que a busca obsessiva por manter o status e as avaliações positivas pode ter tido influência nas tragédias.

Suas mortes abriram espaço para uma conversa mais profunda sobre saúde mental e os abusos estruturais do setor de restaurantes, ambientes onde o desgaste físico e emocional é constante — especialmente em cozinhas de alto nível.

Embora não se possa afirmar que o Guia Michelin tenha relação direta com esses casos, as perdas levaram a instituição a rever seus protocolos. Desde então, passou a adotar políticas mais cuidadosas para comunicar a perda de estrelas, com um acompanhamento mais sensível aos chefs afetados.

Em 2023, dois dos chefs mais renomados do mundo — Christopher Coutanceau e Guy Savoy — foram informados de que seus restaurantes perderiam uma estrela, passando de três para duas na próxima edição francesa do guia.

A decisão, que pode prejudicar tanto a reputação quanto os negócios dos chefs, foi comunicada pessoalmente por Gwendal Poullennec, diretor internacional do guia, que viajou até La Rochelle para conversar com Coutanceau e teve uma reunião privada com Savoy, em Paris.

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Esse tipo de abordagem tem se tornado mais comum, refletindo uma crescente preocupação com a saúde mental dos chefs diante da intensa pressão no universo da alta gastronomia.

Isso porque o reconhecimento não é apenas um sopro no ego dos chefs, mas também representa uma considerável melhora nos caixas de seus restaurantes.

Estudos realizados por economistas nos últimos anos demonstram que as estrelas podem ajudar os negócios a ganharem mais; em alguns casos até a duplicar seus faturamentos — 100% a mais no caso de três estrelas.

"Ser um restaurante com estrela Michelin contribui para uma melhoria da rentabilidade independentemente da gestão de custos, sugerindo que os clientes estão dispostos a pagar preços mais elevados pelo facto de ser um restaurante com estrela Michelin", diz um estudo publicado em dezembro de 2023.

Por isso tantos chefs sucumbem à pressão que as listas e premiações representam. De chefs que decidiram fechar seus restaurantes depois de ganharem a cotação máxima a outros que abandonam o formato de alta gastronomia reestruturando seu restaurante para oferecer uma experiência mais acessível, os caminhos são muitos — e passam longe das estrelas também.

Numa via contrária, o Michelin tenta se atualizar: criou estrelas verdes para sustentabilidade e expandiu seu alcance, premiando até restaurantes de rua e pequenas taquerias no México.

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Também criou reconhecimentos de prêmios especiais — serviço, chef revelação, etc — para mostrar que pode ir além de cotações estrelares e passa a ampliar sua atuação a outras cidades, países e continentes, para buscar manter sua marca ainda mais relevante.

Para muitos chefs, a estrela ainda carrega um peso emocional e simbólico. Ainda assim, para uma nova geração de cozinheiros, o Michelin talvez já não tenha a mesma importância — o que revela um mercado em expansão por diversas direções, algo essencial para a profissionalização do setor.

Mesmo assim, é sempre triste ver um restaurante perder um reconhecimento. Uma estrela que se apaga ilumina, por contraste, as tensões, os limites e os caminhos de uma gastronomia em constante reinvenção.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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