A batida que veste: o funk e a moda que vêm da quebrada

Ler resumo da notícia
O funk brasileiro, filho das favelas e das ruas, é mais do que um ritmo. É movimento cultural, grito de identidade, símbolo de resistência. Dos bailes de comunidade aos palcos internacionais, percorre um caminho de criminalização e conquista. E, assim como o hip-hop fez décadas atrás, começa a deixar sua marca na indústria da moda.
Enquanto o funk ainda é alvo de repressão por aqui, no mundo da moda internacional ele já virou referência. Marcas como Givenchy, Balenciaga, Marine Serre e Diesel incorporam a estética das periferias brasileiras em suas coleções, com óculos espelhados, conjuntos esportivos, correntes, bonés, tênis caros. Toda essa combinação nasceu nos bailes, não nas vitrines.
A quebrada sempre sonhou alto. E esse sonho se veste: com Lacoste no peito, Osklen no corpo, Nike no pé e cordão no pescoço. O funk nunca pediu licença, ele chegou, ocupou e fez do estilo uma forma de dizer "eu existo, eu posso, eu venço".
Mas não se engane: o amor do funk por essas marcas não nasceu em loja de shopping. Nasceu no espelho da autoestima, no desejo de marcar presença num mundo que só respeita o que reluz. E o mais bonito é que não foi só consumo, foi ressignificação. A favela pegou símbolos de elite e fez deles uniforme de resistência. Virou look de clipe, roupa de baile, figurino de quem, mesmo sem convite, decidiu ser protagonista.
É por isso que dói —e ao mesmo tempo fortalece —ver a história sendo apagada quando essas mesmas marcas demoram décadas para reconhecer o território que as abraçou primeiro. A Lacoste, por exemplo, foi cantada, exaltada, desejada, ostentada. Virou sinônimo de status antes mesmo de entender o que era um "Kit Lacoste". Mas só muito recentemente decidiu se aproximar —e não foi porque entendeu a potência cultural do funk, mas porque entendeu o tamanho do lucro.
A entrada da Lacoste no jogo, com campanhas estreladas por funkeiros e a criação da chamada Casa Lalá —um espaço temporário montado pela marca em 2023 para celebrar seus 90 anos, com festas, encontros e ativações culturais voltadas à estética e ao som da quebrada —, é antes uma resposta do mercado do que um gesto de reparação. Não é sobre carinho, é sobre cálculo. Não é sobre parceria, é sobre projeção.
Da favela à passarela existe um longo caminho a percorrer e, na maioria das vezes, sem holofotes. Essas influências muitas vezes chegam aos desfiles sem diálogo com os corpos que as criaram. Quem vem resgatando essa linguagem com legitimidade é gente como Fernanda Souza Corrêa, stylist e pesquisadora conhecida como Fernanda Corre Rua, que traduz o funk em ensaios, clipes e campanhas com artistas como Tasha & Tracie. Sua curadoria estética tem influenciado editoriais e criado pontes entre moda, música e território.
Mas se a pergunta é quem levou o funk para o topo do pop global, a resposta é direta: Anitta. Com estratégia internacional, parcerias de peso e presença em grandes premiações, ela transformou o funk em produto cultural global, levando o batidão do Rio para os palcos de Miami, Madrid e Milão. Duas frentes, dois caminhos e um mesmo ponto de partida: a favela.
Num país onde o funk ainda é sistematicamente perseguido, ver Oruan, artista mais tocado do Spotify brasileiro, estampar a capa da i-D UK é um ato de ruptura. A imagem dele, potente e estilizada, circula pelo mundo, enquanto aqui dentro ele é perseguido pela polícia por ser quem é. No mesmo Brasil em que Oruan conquista páginas de uma das revistas de moda mais importantes do planeta, MC Poze do Rodo, um declarado amante do jacaré da Lacoste, é preso num estado onde a milícia dita os trâmites e sabe exatamente o poder de mobilização de um baile funk.
Porque é isso que está em jogo: controle.
O funk, como o samba, o rap, o jazz e o soul, sempre foi mais do que ritmo. É denúncia, território, estilo e invenção. E a tentativa de criminalizá-lo segue o mesmo roteiro aplicado a todos os gêneros negros que ousaram ser potência: deslegitimar, marginalizar, desumanizar.
Mas a favela nunca pediu aval para criar. E agora, enquanto as passarelas se curvam diante da estética das quebradas, o Brasil oficial ainda tenta calar a batida que vem de baixo. Só que a batida não para.
O que é certo é que o funk tem uma identidade única, com um poder de reinvenção gigantesco. E, assim como o hip-hop, o funk nos ensina que estilo, atitude e cultura andam juntos, e que o futuro da moda está, sim, na periferia. Porque a periferia é o centro do mundo e não a margem.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.