Glória abriu caminhos onde não havia estrada: 'Ela me dizia que é possível'
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Eu cresci olhando para televisão e vendo uma mulher preta, linda, com um microfone na mão, atravessando o mundo sem pedir licença. O nome dela era Glória Maria.
E mesmo sem dizer uma palavra diretamente para mim, ela dizia tudo. Dizia: "É possível". Eu tinha entre cinco e seis anos, ainda não sabia o nome da profissão dos sonhos. Só sabia que queria ser aquilo. Queria ser ela.
Glória era o contrário de tudo o que o mundo tentava me convencer a ser. Enquanto nos diziam para ficarmos quietas, discretas, nos bastidores, ela estava no ar, com o seu cabelo black solto, a fala firme e o passaporte carimbado.
Ela não foi só a maior repórter do país. Ela foi, e ainda é, a imaginação viva de futuro para meninas negras que não sabiam onde era o centro do mundo, mas sabiam que queriam estar nele. A imaginação de muitos meninos e meninas negros e não negros que tiveram ela como inspiração no momento de escolher uma profissão ou de decidir desbravar o mundo com a mala cheia de coragem.
Décadas depois, essa lembrança virou movimento. Eu e a jornalista Letícia Vidica nos unimos para formar um grupo de jornalistas negras inspiradas na bravura de Glória. Foi assim que nasceu o Herdeiras de Glória Maria, um coletivo de comunicadoras, que se encontram pra dividir angústias, alegrias e sonhos. E uma certeza: o legado de Glória é nosso. E ele continua.
Foi dentro desse grupo que surgiu a ideia do documentário que agora se torna realidade. A jornalista Danielle França me mandou um áudio no domingo me contando que estava determinada a propor uma série documental para eternizar a história da maior jornalista da TV brasileira com o respeito e a grandeza que ela merece.
A série Glória, com estreia marcada para o dia 27 de abril, logo após o Fantástico, vai mostrar o que o Brasil viveu com ela, e também o que ainda não viu. Quatro episódios com imagens inéditas, arquivos pessoais, bastidores emocionantes, e um encontro entre 18 comunicadoras negras que reconhecem: Glória abriu a porta e deixou escancarada.
Ela é mais que pioneira. É ancestral do futuro. Eu me guio muito por uma frase da escritora Alice Walker em que ela diz que: "a maneira mais comum de as pessoas desistirem do seu poder é acharem que não têm nenhum".
Gloria sabia que tinha. E fez questão de nos lembrar que nós também temos. Por isso é tão importante para nós nos apresentarmos como suas herdeiras, pois herdar, neste caso, nunca foi sobre dinheiro. Foi sobre olhar pro mundo e saber que temos lugar. Sobre continuar o que já começou antes mesmo da gente nascer.
A série não mostra só a Glória repórter. Ela nos entrega a Glória inteira. A mulher que escrevia suas vivências em bloquinhos de bolso, que não cabia em roteiro nenhum, que voava sozinha e aterrissava inteira em nossas casas.
A mãe de Maria e Laura, que descobriu um outro amor quando adotou as filhas. A amiga de Roberto Carlos, Maria Bethânia, Mano Brown, Emicida. A parceira de redação de Willian Bonner, Pedro Bial, Fátima Bernardes, Zileide Silva. A que fazia rir com as histórias de bastidor e fazia chorar com a potência do que representava.
A Glória que teve a coragem de fumar maconha na televisão de um país que não sabe lidar com a liberdade. Que pulou de bungee jump e desabou no choro ao voltar. Que foi à África buscar mais do que uma pauta: foi buscar a si mesma. Que recontou a dor e o riso do Brasil sem perder o brilho dos olhos nem por um segundo. E tudo isso embalado por uma suavidade intensa. Um jeito de estar no mundo como se o mundo lhe fosse morada, mas nunca palco.
Glória partiu no dia 2 de fevereiro de 2023, vítima de um câncer no cérebro. Mas ela nunca saiu de cena. Ela permanece nos nossos gestos, na firmeza com que ocupamos espaços, na ousadia de contar as nossas próprias histórias.
E agora, com essa série, o Brasil inteiro vai poder acompanhar o que nós sempre soubemos: Glória Maria não era só presença. Era permanência.
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