O que cães semisselvagens que sobreviveram a Chernobyl ensinam à ciência
Do UOL, em São Paulo
14/05/2025 05h30
Quase 40 anos após o desastre de Chernobyl, cães que vivem na região — familiares dos que sobreviveram à tragédia — surpreendem cientistas. Um estudo genético inédito revelou populações distintas, com laços familiares complexos e possíveis pistas sobre os efeitos da radiação prolongada no DNA.
Genética única
Animais não só sobreviveram, como se multiplicaram. Entre 2017 e 2019, pesquisadores coletaram amostras de DNA de 302 cães que vivem dentro e ao redor da Usina Nuclear de Chernobyl, que são familiares daqueles que foram deixados para trás após o incidente, em 1986.
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Deram origem a gerações de cães semisselvagens. Apesar da contaminação radioativa, alguns desses cães conseguiram sobreviver e, ao longo das décadas, eles se reproduziram livremente e hoje habitam a chamada ZEC (Zona de Exclusão de Chernobyl), uma área de 2.600 km² altamente contaminada. Essa identidade pode ter surgido como resposta à pressão seletiva do ambiente altamente irradiado ao longo de quase quatro décadas.
Cães da usina têm genética única. Os cães que vivem no interior da ZEC mostram maior similaridade genética entre si. Essa uniformidade pode indicar um processo de adaptação ao ambiente radioativo ao longo do tempo.
DNA pode revelar marcas da radiação. Ao analisar o material genético dos cães da usina e compará-lo com o de animais de áreas menos contaminadas, os cientistas buscavam identificar mutações associadas à exposição prolongada. O objetivo era entender quais partes do genoma foram alteradas e se essas mudanças afetaram a saúde, a capacidade reprodutiva e a expectativa de vida dos cães.
Reprodução pode ter sido alterada
Cães criaram laços familiares complexos. Ao todo, foram identificadas 15 famílias genéticas entre os cães da ZEC. A maior delas, com pelo menos 160 cães, conecta animais de diferentes pontos da zona, como a estação Semikhody, a cidade de Pripyat e o interior da usina.
Vivem em áreas com diferentes níveis de radiação. O estudo identificou populações distintas de cães que vivem em regiões com graus variados de contaminação. Foram analisados animais que vivem dentro da usina, em Chernobyl City (15 km de distância) e em Slavutych (45 km).
Reprodução de cães da ZEC ocorre em grupos isolados. Os cães da usina formam populações geneticamente mais homogêneas. Isso indica acasalamentos frequentes entre membros próximos, fenômeno conhecido como endogamia, comum em populações isoladas.
Os cães de Chernobyl City mostraram maior variabilidade genética. Amostras demonstraram maior contato com raças puras, como pinschers, boxers e rottweilers.
Já em Slavutych, os cães não formam uma população geneticamente fechada. Seus perfis genéticos são mais variados e dispersos. Eles também mostraram os maiores níveis de compartilhamento genético com cães de raça pura, como labradores, boxers e yorkshires — sugerindo forte influência de cães domésticos.
Estudo dos cães é importante para humanos
Pesquisa serve como modelo para entender radiação em mamíferos. Segundo os pesquisadores, os cães de Chernobyl são ideais para estudar como a radiação afeta o DNA ao longo de várias gerações. Diferente de experimentos em laboratório, esse é um caso real, com exposição contínua, em ambiente aberto e sob múltiplas variáveis.
Pode ajudar a proteger humanos e animais. Entender como esses cães sobreviveram e o que mudou em seu genoma pode trazer respostas importantes para futuras missões espaciais, acidentes nucleares e áreas contaminadas. "O que ajuda você, o que prejudica você no nível do DNA?" é a pergunta que norteia a pesquisa, nas palavras da geneticista Elaine Ostrander, coautora do estudo.
Reforça a importância do monitoramento ambiental. O caso dos cães de Chernobyl mostra como os animais podem se tornar sentinelas biológicas, revelando os impactos ocultos de desastres ambientais sobre a vida.
Estudo abre caminho, mas não fecha respostas. Embora os pesquisadores tenham identificado diferenças genéticas marcantes entre os cães que vivem sob diferentes níveis de radiação, o estudo ainda não prova que essas mudanças foram causadas pela exposição. Os resultados servem como base para pesquisas futuras que vão investigar mutações específicas e seus impactos na saúde dos animais — e, possivelmente, na de humanos expostos a ambientes extremos.