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Reportagem

'Excalibur africana'? A espada mística que nem Muhammad Ali conseguiu mover

6º41'N, 1º37'O
Local da Espada de Okomfo Anokye
Kumasi, Axânti, Gana

No Império Axânti, ouro fazia parte do dia a dia de camponeses comuns. Qualquer homem com alguma importância carregava balanças e pesos de ouro por onde andava. Até bananas eram avaliadas em pó de ouro.

Os axântis, um dos principais povos akans da África Ocidental, foram o poder dominante que surgiu na região conhecida como Costa do Ouro, no fim do século 17. Com armas de fogo holandesas e inglesas, eles incorporaram territórios vizinhos e entraram no cada vez mais lucrativo mercado escravagista para bancar seu poderio bélico.

Osei Tutu, fundador do reino, simbolizou a unificação dos grupos akans vizinhos por meio de um banco de madeira parcialmente coberto de ouro. Segundo a lenda, Okomfo Anokye, o sumo sacerdote dos axântis, fez com o que esse trono descesse dos céus e repousasse no colo de Osei Tutu.

O Banco de Ouro virou objeto de culto e símbolo máximo do império. Não foi algo que veio do nada: os chefes akans usavam bancos cerimoniais como ícones de autoridade, então Tutu e Anokye introduziram um novo, que unificasse todos, para representar a unidade espiritual dos povos akans.

Banco de Ouro
Banco de Ouro Imagem: UK gov

O Banco de Ouro, um assento curvo de madeira, coberto de ouro e decorado com sinos, era tão importante que ele tinha seu próprio trono. Treze reis ashântis assumiram o poder em cerimônias em que ele personificava a nação.

Até que um oficial inglês resolveu que o objeto não pertencia mais aos ashântis. É aquele meme, né? As pirâmides do Egito só continuam no Egito porque são pesadas demais para levar para a Europa.

"Para os britânicos, era apenas mais um conflito cansativo. Para os axântis, foi a luta final para manter sua independência", resumiu o historiador Martin Meredith no livro "O Destino da África".

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Que lugar é esse?

Asantehene Otumfuo Nana Osei Tutu 2°
Asantehene Otumfuo Nana Osei Tutu 2° Imagem: REUTERS/Francis Kokoroko

Kumasi, atualmente uma cidade agitada, a segunda maior região metropolitana de Gana e um polo comercial no centro do país, era a capital do Império Axânti. Em um terreno hoje engolido pela mancha urbana, está instalada outra antiga lenda, a espada de Okomfo Anokye.

Teria sido este o ponto em que o Banco de Ouro pousou sobre Osei Tutu. Para marcar o local, o sacerdote teria fincado uma espada em uma pedra no chão.

Anokye declarou que ninguém conseguiria remover o artefato. Além disso, o ponto passaria a ser um lugar de cura para as pessoas.

Dois séculos depois, Kumasi deslumbrava os europeus. Em 1817, Thomas Bowdich, funcionário de uma companhia comercial britânica, descreveu a cidade como uma urbe bem planejada, arborizada, com arquitetura própria. As casas tinham telhados pontudos, beirais salientes e ornamentações complexas.

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Varria-se as ruas todos os dias. Muitas residências tinham banheiro com descarga de água fervente. Luxos incomuns para a época, em qualquer lugar do mundo.

Era uma sociedade militar, capaz de convocar até 80 mil homens para a batalha. Uma riqueza que se traduzia também na decoração bélica: em 1841, um missionário, convidado para um jantar suntuoso no palácio real, contou 31 espadas de cabo de ouro expostas em um pátio.

Não demoraria para os britânicos, a potência europeia mais ativa na região, tentarem incorporar os territórios axântis. Em 1874, eles invadiram Kumasi, após vencerem uma feroz resistência.

A cidade estava vazia, abandonada propositalmente pelos axântis, mas o palácio ainda continha uma enormidade de riquezas. Os ingleses destruíram, explodiram, profanaram e incendiaram a capital.

Os axântis, enfraquecidos, caíram em anos de guerra civil. As províncias costeiras foram sendo incorporadas pelo Reino Unido a partir de seu forte em Acra (hoje capital de Gana), que os britânicos compraram dos dinamarqueses em 1851.

Em 1901, os axântis capitularam. Todos os dias, ao meio-dia, um canhão disparava em Kumasi um tiro para lembrar aos habitantes o domínio britânico.

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Mas o grande símbolo do império derrotado, que os ingleses tentaram e tentaram surrupiar, permaneceu escondido. Eles jamais conseguiram presentear a rainha Vitória com o Banco de Ouro.

Em 1957, Gana foi a primeira colônia da África Ocidental a conquistar a independência. Sete anos depois, a visita de um astro internacional ao país marcou toda uma geração.

Encontro de lendas

Em 1964, dois meses após se tornar campeão mundial dos pesos pesados, Cassius Clay fez uma longa viagem à África para conhecer suas raízes e aprender sobre o islã. Na mesma época, ele assumiu o nome Muhammad Ali.

Em Gana, ele foi recebido como a lenda que se tornaria. "Ainda me lembro vividamente das cenas de êxtase do dia, com crianças correndo, mulheres estendendo seus panos em adoração, enquanto derramavam ou polvilhavam pó por todo o lugar, em meio ao pulsar dos tambores falantes locais e à dança típica 'borborbor' dos ewes para dar as boas-vindas ao herói afro-americano", escreveu o jornalista ganês Kafui Ameh.

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"Eu lembro de como o povo da cidade reunia cabras, ovelhas, aves, inhames, bananas-da-terra, bananas, peras, cana-de-açúcar, mamões, abacaxis e tudo o que pudesse encontrar para ser presenteado pelo chefe, Okusie Akyem Foli 4º, ao augusto visitante. Todos queriam demonstrar seu carinho.

"Todos queriam tocar ou apertar as mãos do novo campeão mundial, da mesma forma que muitas pessoas em Acra e Cape Coast se apressaram para ver ou tocar Barack Obama, o primeiro homem negro a ser eleito presidente dos Estados Unidos da América, quando ele visitou Gana em 2009 com sua família."

Naquele dia, Ali se mostrou muito carinhoso com as crianças. Uma delas contou a Ameh que, ao conseguir tocar o atleta, sentiu-se eufórica e mais alta que o mais alto bambuzal da região.

Como todo visitante, ele foi convidado a conhecer a Espada de Okomfo Anokye. Foi o encontro entre uma lenda ancestral de um orgulhoso reino africano e de um atleta americano, bisneto de um escravizado no Kentucky e uma das maiores lendas do esporte mundial.

Não deu para Ali. Nem mesmo o maior peso-pesado de todos os tempos conseguiu remover a espada.

Foi um alívio para os axântis, para quem o local é sagrado, visitado até hoje pelos seus reis. Se a espada sair dali, será a ruína do povo, segundo o site "Ghana Travel".

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Lendas de espadas mágicas aprisionadas são comuns em diversas culturas. A mais famosa talvez seja a Excalibur, embora as versões mais tradicionais da lenda do Rei Artur digam que a Excalibur não é a espada da pedra, mas a que ele recebeu da Dama do Lago.

No fim, a profecia de Okomfo Anokye se concretizou. A espada, e seu local de cura, ficam hoje colados no segundo maior hospital do país.

Em 2024, a cidade celebrou o retorno de dezenas de peças de ouro e prata que haviam sido saqueadas pelos ingleses mais de 150 anos antes. Os artefatos, símbolo da realeza axânti, preservam os espíritos de antigos reis, segundo a crença.

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