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Reportagem

Monstro que é símbolo na Sibéria surgiu por erro de interpretação de texto

52º16'N, 104º17'L
Estátua do Babr
Irkutsk, Irkutsk, Rússia

Nem sempre criaturas mitológicas surgem da imaginação de pessoas criativas, adubada por paisagens locais e turbinada por costumes antigos. Às vezes, de situações triviais podem nascer símbolos duradouros.

Irkutsk é uma cidade na Sibéria que nasceu e cresceu graças a sua vocação para o comércio. Fundada por cossacos que queriam se livrar do controle do czar, no século 17, ela se tornou um centro de exploração de peles de animais - provavelmente o polo mais importante do mundo nesse setor luxuoso e polêmico.

Irkutsk hoje é conhecida pelos turistas por ser uma parada da Transiberiana. Próxima ao Lago Baikal, ela fica quase no meio do caminho entre Moscou e as pontas orientais da ferrovia, Vladivostok e Pequim, na China.

No centro histórico da cidade, que está na lista indicativa de patrimônios da Unesco (ou seja, é candidata a receber o selo de patrimônio cultural), uma estátua chama a atenção. Ela mostra a criatura símbolo de Irkutsk.

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Imagem: Reprodução

Nada a ver com o urso-pardo, símbolo da Rússia desde o século 16, nem com a mitológica águia de duas cabeças, presente no brasão de armas do país. É algo mais criativo.

Trata-se de um animal feroz, com patas proeminentes, longos bigodes e uma cauda volumosa. Na boca, carrega uma zibelina, mamífero da família das lontras.

A presença da zibelina é fácil de entender e remonta ao comércio de peles. Em séculos anteriores, a demanda por zibelina era tamanha que a caça desses animais foi um dos principais motivos para a expansão do Império Russo em direção ao Oriente.

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Pele de zibelina era algo muito desejado em todas as cortes europeias. Assim, os czares conquistaram a Sibéria e o comércio desse pequeno animal se tornou uma importante fonte de divisas russa.

Os depósitos de Irkutsk ficavam abarrotados de peles de raposas, esquilos, ursos-polares, gatos-selvagens, visons e arminhos (esses dois últimos, parentes da zibelina). No século 17, uma pele de raposa preta de primeira podia render ao caçador o equivalente a uma cabana, 20 hectares de terra, cinco cavalos, 40 cabeças de gado e dúzias de galinhas.

Era muito dinheiro. Então a presença da zibelina no brasão da cidade é coerente.

Quanto ao animal que a carrega na boca, é um babr. Essa é a palavra usada antigamente na Sibéria para felinos perigosos, como panteras, leopardos e tigres-siberianos.

O brasão original de Irkutsk, por isso mesmo, tinha um tigre com a zibelina na boca. Só que a burocracia imperial mudou as coisas.

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Imagem: Reprodução
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No século 19, durante o reinado de Alexandre 2º, todos os brasões do império precisaram ser examinados, atualizados, editados. Os oficiais em São Petersburgo, então capital russa, distante mais de 5,8 mil quilômetros de Irkutsk, notaram que havia um erro na descrição do brasão da cidade siberiana.

Os fundadores de Irkutsk erraram na grafia, eles pensaram. Não era "babr", mas "bobr". Então, os proativos funcionários da capital corrigiram o texto e mandaram atualizar a ilustração, afinal o animal também estava errado.

Isso porque "bobr", em russo, significa "castor", não "tigre". Então seria preciso reparar o lapso.

Emenda melhor que o soneto

O tigre-siberiano é um grande felino que pode chegar a 300 quilos. O castor-eurasiano é um roedor semiaquático que pesa entre 10 e 30 quilos.

Além das diferenças um tanto óbvias entre eles, há outra: o castor é herbívoro. Por que ele teria uma zibelina entre os dentes?

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Os burocratas não se atentaram ao detalhe. Estavam sobrecarregados, tendo que analisar dezenas de brasões de armas ao mesmo tempo.

Então, resolveram dar um tapinha no visual da fera. Removeram as listras e acrescentaram membranas natatórias nas patas. Completaram dando uma encorpada na cauda, para deixá-la mais parecida com a dos castores, que é larga e escamosa, usada para nadar.

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Imagem: Reprodução

Assim, sem querer, criaram um animal meio tigre, meio castor. Uma bizarrice que não fazia parte de mitologia alguma, mas que a burocracia imperial acabou injetando à força na paisagem da Sibéria.

Algumas fontes dizem que já no século 18 o castor era usado no brasão da cidade. A mudança teria sido uma forma de agradar à imperatriz Catarina, a Grande, que era de origem germânica. Como "castor", em alemão, é "biber" (logo, parecido com "babr"), essa seria uma maneira de aproximar Irkutsk da poderosa soberana.

O erro só foi percebido em 1997, quando, já no período pós-imperial e pós-soviético, os símbolos locais foram mais uma vez atualizados. A palavra original, "babr", foi resgatada, mas o visual fantástico criado nos anos 1870 permaneceu.

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Ele já fazia parte do imaginário, e a cidade decidiu abraçá-lo de vez, com estátua no centro e tudo mais.

Babr de Irkutsk
Babr de Irkutsk Imagem: varvar2010/stock.adobe.com

Os siberianos chamavam os tigres de "babr", palavra de origem túrquica. Já os russos ocidentais, de "tigr". Logo, a confusão se criou, e Irkutsk ganhou um mascote único, criatura que nasceu de um erro típico de pessoas que desconhecem ou ignoram particularidades culturais em um país continental.

O babr é um símbolo curioso dessa cidade nos confins da Rússia, que em algumas ocasiões foi marcada pelos extremos geográficos e culturais do país. No começo do século 19, era uma terra de exilados. No 21, um exemplo trágico do alcoolismo estrutural que corrói a nação.

Em 1825, uma revolta contra o czar Nicolau 1º fez de Irkutsk destino de muitos nobres, intelectuais e oficiais exilados. A efervescência cultural e arquitetônica que se seguiu, com a construção de belos casarões de madeira, rendeu à cidade o apelido "Paris da Sibéria".

Casa do século 19 em Irkutsk
Casa do século 19 em Irkutsk Imagem: Shchipkova Elena/stock.adobe.com
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Em 2016, cerca de 70 pessoas morreram intoxicadas por metanol. É razoavelmente comum, no país, beber óleos de banho com etanol potável, que custam menos do que uma garrafa de vodca.

Só que uma leva da produção desse corote suspeito continha doses letais de metanol. O episódio escancarou a crise de saúde pública que o alcoolismo representa para uma população afetada por crises econômicas e sanções.

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