Milly Lacombe

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OpiniãoEsporte

Eis aqui o jeitinho brasileiro, meu caro João Martins

O assessor técnico de Abel Ferreira, o português João Martins, reclamou do jeitinho brasileiro depois do jogo em que seu time perdeu para o Flamengo. No mesmo jogo o diretor técnico do Flamengo, José Boto, sugeriu que estamos no terceiro mundo ao reclamar de uma invasão do vestiário dos juízes por alguém do Palmeiras - o que não aconteceu.

Vamos falar primeiro do jeitinho brasileiro. De fato, João está certo: existe mesmo um jeitinho brasileiro.

Ele se manifesta todas as vezes que a bateria da Portela entra na avenida. Ele está vivíssimo no Olodum. Ele mora em Gilberto Gil, Lelia Gonzales, Ailton Krenak, Chico Buarque, Fernanda Torres, Wagner Moura, Carolina Maria, Ana Maria Gonçalves, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo. Ele está na cintura de Garrincha, na cabeça de Pelé, na genialidade de Marta, na alma de Zico, na perna esquerda de Rivellino. Ele esteve com Senna, entrou no tablado com Daiane dos Santos e na trave com Rebecca Andrade. Já dançou o frevo, meu caro João? Já chacoalhou com o funk e com o forró? Olha aí o jeitinho brasileiro explodindo fronteiras e gerando vida. Quem sabia bem dele era Telê Santana que, em 82, encantou o mundo com nosso jeitinho muito brasileiro.

Então, antes de falar bobagem, compreenda onde está. Nossa história é uma história de resistência e de sobrevivência contra a colonização. Olha agora a sua história chegando perto da nossa, quem diria. Um país que nasceu como um projeto econômico conhecido como latifúndio primário escravagista exportador. Uma forma de violência, de extermínio e de genocídio. Fomos formal e legalmente saqueados por 400 anos. Nossas riquezas servindo à construção de metrópoles romantizadas por sua beleza, limpeza e imponência em solo europeu. Sabe o que acontece com uma nação construída nessas bases, João? Vladimir Safatle explica:

"O latifúndio escravagista exportador faz uma distinção ontológica entre sujeitos, de um lado aqueles reconhecidos como pessoas e que têm direito a um Estado protetor; do outro, sujeitos que caem ao estado de coisas e, para eles, não tem Estado protetor, só predador. Quando essas pessoas morrem, não tem dor, nem luto, nem lágrimas. Não tem história, nem nome, nem nada."

E, ainda assim, aqui estamos. Nosso jeitinho é ferramenta de sobrevivência. É arte. É cultura. É a gente na avenida e nas ruas em fevereiro. É o São João e o Círio de Nazaré. Está nos terreiros e nas encruzilhadas.

Respeito máximo ao nosso jeitinho, João, porque ele, afinal, o acolheu.

Quanto a José Boto, seria bacana romper a ignorância do uso de termos que já não existem mais. Terceiro mundo não se usa, meu caro. O que antes era assim chamado estava nessa condição por culpa do colonialismo praticado durante séculos por países na Europa. Faz um tempo que a terminologia correta é: países em desenvolvimento. E aqui poderíamos entrar num debate maravilhoso sobre o que é exatamente desenvolvimento, citar Walter Benjamin (todo documento de cultura é também um documento de barbárie), mas deixemos para lá porque se você ainda usa "terceiro mundo" então não se encontra perto de estar preparado para esse debate.

O fato é: o Brasil os recebeu, é aqui que vocês vivem, ganham, gastam, amam, sofrem, respiram, vibram, gozam, enriquecem. Seria demais pedirmos, com gentileza, mais respeito com essa cultura e com essa terra?

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Dedico esse texto ao amigo Marcelo Mendez, que sempre ilumina o caminho com sua delicada e rara inteligência. Os poetas seguem sempre na frente, meu amigo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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