Financiamento climático atual enxuga gelo, diz pesquisadora do Pará

Para Lise Tupiassu, professora e pesquisadora da UFPA (Universidade Federal do Pará), pós-doutora em financiamento climático pela Universidade de Columbia, mais importante do que aumentar o valor destinado a mitigar os efeitos da mudança do clima é discutir e aprimorar a maneira como esse dinheiro é alocado. "O fluxo de financiamento climático hoje, na maior parte, vai para atividades que apenas enxugam gelo e não chega a quem mais precisa", disse em entrevista a Ecoa.

Ela defende a necessidade de flexibilizar os mecanismos de financiamento para torná-los mais acessíveis às comunidades que há milênios preservam a floresta. "Gastam-se milhões em tecnologias extremamente caras, como plantas industriais que capturam carbono mecanicamente, quando já existe uma tecnologia muito mais barata para isso, que é plantar ou manter árvores de pé", afirma.

Pró-reitora de relações internacionais da UFPA, Tupiassu se uniu a outras organizações e instituições de ensino da região para lançar o movimento "Ciência e Vozes da Amazônia na COP30", buscando garantir participação ativa dos atores locais no evento e dar visibilidade às soluções gestadas na região. "Nesta COP temos duas grandes missões que são defender o multilateralismo climático e fazer as pessoas olharem para a Amazônia com um olhar realista, de dentro para fora".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Na sua visão, o que está em jogo na COP30?

Está em jogo o futuro do multilateralismo climático. No cenário geopolítico hoje, há um enfraquecimento do multilateralismo, principalmente pelo posicionamento adotado pelos Estados Unidos, que impacta também na tomada de decisão dos demais países. O poder das relações multilaterais, mediadas pela ONU (Organização das Nações Unidas), fica enfraquecido com a postura dos EUA. Isso já aconteceu em outro momento, mas agora vem combinado com outras peculiaridades, como um cenário de guerras no mundo, e de guerras tarifárias.

Temos um recrudescimento de outras preocupações e interesses que acabam suplantando a questão climática, embora não devessem, porque isso envolve a sobrevivência de cada um de nós no planeta Terra. Não é a sobrevivência do planeta que está em jogo, mas a da espécie humana.

Temos uma responsabilidade muito grande nesse cenário. As duas COPs anteriores foram realizadas em países que não têm vocação para lidar genuinamente com a questão das mudanças climáticas, principalmente a partir da visão do Sul Global. São países que também têm dificuldade com a participação democrática, e tudo isso acabou gerando resultados abaixo do esperado nas negociações. Isso faz com que os olhares todos se voltem para a COP 30, em Belém, com uma expectativa muito grande.

E sobre quais pontos da agenda climática recaem essas expectativas?

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Há uma expectativa de que a conferência ajude a retomar a credibilidade desse tipo de negociação multilateral, dentro da política global, e ao mesmo tempo espera-se que a gente puxe por ambições maiores. Vamos comemorar os dez anos do Acordo de Paris e teremos uma rediscussão das NDCs (compromissos dos países signatários do acordo com a redução de emissões). Também temos discutido o financiamento climático, que até aqui não gerou um efeito concreto, e por isso recai sobre esse evento uma responsabilidade gigantesca.

Temos uma grande responsabilidade de pautar os problemas a partir da realidade. O fluxo de financiamento climático hoje vai, em sua maior parte, para atividades que apenas enxugam gelo e não chega a quem mais precisa. Quando se trata das questões amazônicas e da transição energética, muitas vezes se esquece que essa é a região do país com maior insegurança energética. Apesar de a Amazônia ser uma grande produtora de energia limpa, ela é direcionada para outras finalidades que não garantir o acesso às pessoas da região. A transição energética na Amazônia passaria primeiro por conferir energia limpa para a região.

Temos que pautar os temas de dentro para fora, porque muitas vezes caminhamos na esteira de pautas que não são construídas dentro do Brasil e da Amazônia e assim ficamos à reboque. Trazendo a COP para o local, temos uma chance de mudar isso, mas vejo com muito pesar que questões sobre Belém estar preparada ou não para receber o evento ainda estejam acima da discussão principal. Está havendo uma inversão de prioridades.

Nesta COP temos duas grandes missões que são: defender o multilateralismo climático e fazer as pessoas olharem para a Amazônia com um olhar realista, de dentro para fora, para que a gente consiga pautar as questões a partir do que é, de fato, relevante.

O financiamento climático tem sido um dos temas centrais das COPs, e no Brasil não será diferente. Na COP29, os países se comprometeram em investir US$ 300 milhões ao ano e, mesmo sem terem alcançado plenamente essa meta, se fala agora em elevar o compromisso para um valor mais de 4 vezes maior. Como você avalia as discussões até aqui?

A questão do valor é uma das vertentes da discussão sobre o financiamento climático. Os países se comprometeram com um volume de recursos que demorou para ser atingido, muitos não cumpriram. E agora estamos buscando o compromisso com um valor ainda maior, mas não temos mecanismos no sistema para garantir que isso seja cumprido. Precisamos encontrar meios para que os recursos de fato sejam incorporados ao sistema.

Mas isso não resolve todo o problema. A segunda vertente é como esse financiamento está sendo alocado. Esse dinheiro, que sai dos países desenvolvidos para os países do Sul Global, não é necessariamente gratuito. Ele vem muitas vezes como empréstimo, com condições que os destinatários finais não conseguem atender.

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Uma comunidade no interior do Pará que busca apoio para estruturar sua bioeconomia dificilmente terá infraestrutura de compliance para as exigências do financiador. E quem mais precisa acaba não conseguindo acessar os recursos, o que demonstra a falta de economicidade nesse sistema. Por isso, aumentar o valor é apenas uma pequena parte da questão e não garante a efetividade do financiamento.

Se continuarmos discutindo de fora para dentro, sem participação efetiva de quem vai receber o financiamento, esse dinheiro não chegará na ponta. Precisamos de modalidades mais flexíveis, que sejam estruturadas pensando no objetivo final. Se não, é como convidar um membro dessa comunidade para participar de um evento da ONU e exigir que ele fale inglês fluente. Você não está querendo realmente atingir a finalidade.

A ministra Marina Silva falou que é uma obrigação conseguirmos US$ 1,3 trilhão por ano para mitigar os efeitos da mudança do clima. Ainda que o valor por si só não resolva os problemas, você acredita que é uma meta factível?

É possível, sim. Temos dados que mostram que o financiamento mobilizado na Covid-19, por exemplo, foi de quatro a cinco vezes superior a esse valor proposto para financiamento climático. O volume de recursos destinado a guerras e armamentos também é bastante superior. Além disso, se olharmos além do framework da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), considerando fontes públicas e privadas, há dados que mostram que o fluxo de financiamento já está no patamar de US$ 1,3 trilhão ao ano.

Não é questão de falta de recursos, mas de vontade política e de momento geopolítico. Por isso, devemos pressionar para que os países olhem isso de forma mais séria. Se vamos conseguir esse comprometimento no atual cenário, tenho dúvidas.

E há outro porém: uma discussão de justiça climática, especificamente no aspecto sobre quem deve pagar a conta. Existe a visão de que os países do Norte Global devem arcar, por terem contribuído mais com as emissões historicamente e se desenvolvido às custas disso. Mas países como China, Índia e Brasil se tornaram também grandes emissores, embora não tenham sido no passado, e por isso os desenvolvidos resistem em arcar sozinhos com esse financiamento. Essa discussão existe desde sempre, os países do norte até cederam um pouco, mas acabam usando isso para não se engajar com valores mais altos.

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Em um cenário global em que a discussão sobre energia é o foco principal da agenda climática, como dar protagonismo à agenda da Amazônia na COP30?

O fato de a COP ser em plena Amazônia pode ajudar, mas a gente precisa chamar a atenção para a floresta, principalmente, para essas incongruências no financiamento climático. Hoje gastam-se milhões em tecnologias extremamente caras, como plantas industriais que capturam carbono mecanicamente, ou máquinas que fazem o sequestro do carbono no subsolo, quando já existe uma tecnologia muito mais barata para isso, que é plantar ou manter árvores de pé. Se você garantir a resiliência das populações que há milênios preservam a floresta, o investimento é infinitamente mais barato.

Está demonstrado que áreas de unidades de conservação onde vivem comunidades tradicionais, com uma relação socioecológica resiliente, mantêm mais floresta em pé. Além de ser bem mais econômico, você beneficia seres humanos com alta vulnerabilidade. Em termos de justiça climática, não há como pensar que investir em novas tecnologias é melhor que financiar a resiliência dessas comunidades. No entanto, de todo o fluxo de financiamento climático que existe hoje, menos de 10% é destinado para atividades de florestas, agricultura e uso do solo. Como aumentar isso? Cabe ao Brasil pautar essa questão como a chave para a solução das mudanças climáticas.

É importante também mostrar o que está acontecendo na Amazônia hoje. A floresta tida como o pulmão do mundo já está emitindo mais carbono do que sequestrando. Isso é resultado de uma visão tradicional de que é preciso colocar a floresta abaixo para desenvolver a região. Não estamos conseguindo garantir que as atividades realmente sustentáveis se mantenham nessa realidade. E temos visto o crime organizado dominar áreas da Amazônia e até constituir empresas para operar de forma insustentável.

Você defende que a questão territorial é essencial para combater esse modelo predatório de exploração da floresta e merece mais atenção. Poderia explicar por quê?

A regularização fundiária é um tema-chave para a proteção da Amazônia, mas infelizmente é um assunto praticamente ignorado. Quando você não sabe de quem é a área, ela fica mais vulnerável. Por exemplo, você tem uma área pública que deveria ser uma unidade de conservação, mas a pessoa consegue um título de posse daquela terra, emitido em cartório e teoricamente válido. Com isso, ela derruba a floresta que deveria ser protegida, e esse desmatamento não será considerado ilegal até o poder público perceber que a pessoa não é titular da área. No Pará, existem três vezes mais títulos de propriedade do que o território do estado. Isso quer dizer que, de cada três pessoas que dizem que são donas da terra, duas não são.

É uma insegurança fundiária que beneficia a dinâmica da grilagem de ocupação e destruição. Outro exemplo é quando alguém consegue uma autorização para fazer um manejo florestal numa determinada área, mas tira a madeira de outra área, e utiliza aquele plano de manejo para "esquentar" a madeira. Existem projetos de manejo que são realmente sustentáveis, feitos de forma séria e que trazem benefícios para a região, mas essas estratégias também são utilizadas para encobrir práticas ilegais e danosas com um viés de legalidade.

Para combater isso, precisamos investir mais em fiscalização, ter uma política veemente de fortalecimento das instituições de controle, envolvendo não apenas os órgãos ambientais, mas uma força policial que possa garantir a segurança dessa atividade de controle. Mas, se não tratarmos de forma séria a questão territorial e garantirmos segurança da titularidade das terras, sejam elas públicas, privadas, unidades de conservação ou terras de comunidades tradicionais, vamos continuar com um vácuo de controle das atividades implementadas nessas áreas.

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O Brasil aprovou no ano passado uma legislação para o mercado de carbono. A insegurança fundiária pode prejudicar o desenvolvimento de projetos na região?

Já tivemos projetos de sequestro de carbono implementados na Amazônia que, depois se descobriu, estavam ligados a uma área pública. Aqueles créditos, que geraram milhões de reais, eram algo totalmente irregular. E o efeito disso para garantir a floresta em pé foi nulo, porque as pessoas que criaram o projeto não tinham qualquer ingerência sobre a área.

O maior fluxo de investimento hoje está no mercado voluntário que, como o nome diz, não é regulado, e esses casos geram insegurança nos investidores. Já ouvi interlocutores dizerem que não querem nem ouvir falar de mercado de carbono, que não dá certo, e aí o que resta é fazer crédito de carbono de planta industrial.

Essa é uma pauta extremamente sensível, porque nós precisamos nos integrar de forma séria ao mercado de carbono. Por mais que ele tenha fragilidades e não seja suficiente para resolver o problema, é um instrumento que pode aumentar o fluxo de financiamento climático para a Amazônia. Mas historicamente temos tido problemas na implementação pelo fato de os projetos serem construídos de fora para dentro, sem uma sensibilidade para questões locais como a própria insegurança fundiária.

Quando pego para analisar um projeto de carbono, basta ler três linhas para dizer se ele tem um problema, e muitas vezes esse projeto passou por várias pessoas sem que o problema aparecesse. Isso porque aquela pessoa que atua, por exemplo, em um escritório em Wall Street [Nova York], não têm uma vivência na região. O mercado de carbono precisa ser fortalecido a partir de uma construção coletiva, em conjunto com as pessoas que estão vivendo a realidade. É preciso entender as peculiaridades amazônicas e criar mecanismos sólidos e salvaguardas que garantam a integridade do território e das relações com as comunidades. Por esse caminho, vejo como uma grande potencialidade.

A legislação que o Brasil aprovou no ano passado trouxe elementos positivos, como a garantia de uma repartição de benefícios mais justa com as comunidades que ocupam a terra e trabalham com ela de forma sustentável. Em outros aspectos, a lei pode ser insuficiente e até infeliz, mas, de toda forma, ela abre o caminho para uma tendência de fortalecimento desse mercado. Agora precisa ser regulamentada.

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