Eduardo Carvalho

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Reportagem

Autora de 'Perifobia' vai mostrar na Flip que periferia não é só carência

"Perifobia". Sim, um neologismo poderoso criado a partir de uma percepção íntima, que remonta à infância, ao desconforto e à repulsa que a periferia pode gerar em quem não a vive. Afinal de contas, ainda há medo da periferia no Brasil? É sobre isso que trata e narra Lilia Guerra, mãe, filha, mulher e autora de um dos livros mais pulsantes da nova literatura brasileira, em reedição pela Todavia.

A auxiliar de enfermagem da capital paulista atribui a este mesmo título uma oportunidade única de transmitir uma mensagem clara. Como ela mesma diz, "o título também é uma história", uma afirmação constante de que "a cidade tem que ser igualitária" e que a "falta de acesso adoece e mata o morador periférico".

Nesta entrevista, a também autora de "Rua do Larguinho" e "Amor Avenida", discute a dualidade em retratar a periferia, equilibrando as dificuldades estruturais com as "doçuras" encontradas no cotidiano, sempre focando na resiliência e possibilidade, nunca na carência.

É com este pensamento que ela faz estreia na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que ocorre no fim de julho, já convidando ao debate: "Os eventos de grande porte têm que acontecer também nas periferias".

O título do livro, "Perifobia" é um neologismo de sua criação que nasceu de uma percepção pessoal, ainda na infância, sobre o desconforto e a repulsa que a periferia pode gerar em quem não está nela. Qual o peso que ela carrega para você, especialmente ao dar nome a este conjunto de histórias?

A possibilidade de transmitir uma mensagem específica já no título. Acho que o título também é uma história. Os contos e as crônicas que se reúnem não falam exatamente da distância. São diversas experiências, mas eu pensei: "Tenho uma oportunidade de me comunicar e não sei se haverá outra. Vou compartilhar tudo o que eu tenho e tudo está relacionado com esse sentimento direta ou indiretamente". Escrever durante os longos períodos que passava no transporte público, por exemplo. Escrever sobre um gato ou sobre um reencontro era um exercício de liberdade, mas, de alguma maneira, tudo era afetado pela distância, e o título já me garantia essa mensagem. Então, uma história podia falar sobre uma tarde num sábado de aleluia ou sobre saudade, mas eu sabia que o título estava lá, na capa, dizendo: a cidade tem que ser igualitária, classificar uma região como nobre é abominável, fazer piada com o endereço de alguém é repugnante, a falta de acesso adoece e mata o morador periférico, as políticas destinadas às beiradas da cidade precisam ser aplicadas com outros critérios e urgência.

Como foi o processo de construção dessa estrutura narrativa tão particular e de que forma o feedback dos leitores do seu blog influenciou a criação desse formato interligado?

Eu sempre quis ter contato com os autores das histórias que eu lia. Quando a situação se tornou inversa, me coloquei no lugar do leitor e pensei no quanto essa interação era especial. Era divertido e emocionante acompanhar as reações deles ao se depararem com novas notícias sobre um personagem. E eram personagens queridos por mim também. Foi um grande prazer costurar essa trama.

Seu livro oferece um retrato real das periferias, mostrando personagens que habitam zonas frequentemente negligenciadas, lidando com a precariedade imposta pela distância geográfica e social, mas que transcendem as limitações. Como é pra você capturar essa dualidade entre as dificuldades e a resiliência - e nunca carência -, e qual a importância de retratar esses universos com a intensidade realista presente no livro?

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Tem dias em que eu ando pelo meu bairro e acho que tá tudo errado. Os fios embaraçados, as calçadas inexistentes, a coleta de lixo inadequada para o formato, os animais abandonados, os pontos viciados de descarte, as caçambas, os pontos de ônibus distantes das ruas, a iluminação precária, as pessoas sem assistência, a desumanização, a poluição visual, a falta de fiscalização com um barulho que ultrapassa o limite do tolerável? mas há dias em que saio pra dar uma volta e sinto o cheiro bom de almoço escapando pelas janelas da creche. Encontro minha vizinha chegando contente do postinho porque tomou vacina. Passo pelo campinho e assisto o treino de futebol da molecada. Vou à feira e vejo uma tia querida escolhendo uma fruta, um legume e a possibilidade da escolha me emociona muito. A própria possibilidade me emociona muito, por isso eu falo tanto essa palavra. É das que mais uso. Há dias em que a cachorrada está atrás de comida, mas, em outros, já está alimentada, só descansando na sombra. Aos domingos sempre tem alguém que puxa uma roda de samba. Eu moro na lonjura. Eu conheço as dificuldades, mas também conheço as doçuras. Eu preciso e quero escrever sobre as duas coisas. Mas as doçuras? ah?

Você tem uma relação profunda com o samba, que considera que a educou e que conversa com você. O samba, aliás, abre cada uma das histórias de "Perifobia". De que maneira essa ligação umbilical com o samba se manifesta em sua escrita? Eles influenciam na prosa e na alma de cada conto e crônica do livro?

Nossa? o samba é meu soro, minha vitamina. O samba ainda me educa, ainda me ensina e me faz companhia. Me inspira, me ensina. Me estimula a pesquisar. Me faz imaginar trilhas e o contrário também. Sou capaz de criar uma história só pra associá-la com um samba. De desenvolver o perfil de um personagem por causa de um samba. E também é uma oportunidade de reverenciar. Exaltar, homenagear. Declarar meu amor e minha devoção.

Quem te acompanha percebe uma visão muito clara sobre "viver de literatura" não apenas no sentido econômico, mas como um movimento que depende do acesso e da intimidade da comunidade com a leitura, defendendo, por exemplo, que bibliotecas estejam mais acessíveis. É possível dizer quais são os principais desafios e as estratégias necessárias para desmistificar os equipamentos de leitura e integrar a literatura ao cotidiano das periferias?

É possível. Eu observo que o movimento de considerar que a biblioteca que está dentro de uma escola ou de um aparelho cultural num bairro eliminou o projeto de construção de bibliotecas. A pessoa não se dirige à biblioteca. Se dirige à biblioteca do centro cultural. Ou, à sala de leitura da escola. Isso é importante e precisa ser mantido, mas a biblioteca se basta. Tem que se bastar. Ela não pode assumir sempre o papel de apoiadora num equipamento. Os pontos de apoio e estímulo à leitura têm que ser mantidos, mas isso não dispensa a necessidade básica que é ter uma biblioteca de porta aberta virada pra rua, acessível, que não dependa de outras atividades paralelas pra funcionar, essencial, com seu nome, sua placa, suas características, seu cheiro.

Uma biblioteca que é biblioteca. Um lugar para onde o leitor se dirige com objetivo e os promissores leitores possam entrar por curiosidade e se sentirem acolhidos. Com horários de atendimento que alcancem diversos públicos. Não importa se vai lotar ou não. O lugar tem que estar disponível pra que um dia possa ser amplamente frequentado. Sábados, domingos, feriados. É preciso adaptar os horários de funcionamento. Estendê-los. Desenvolver a logística necessária pra que isso aconteça é dever de quem se propõe a governar. Mas, enquanto a leitura não for considerada prioridade, não for considerada necessidade básica, isso não vai acontecer. Mas é um conjunto. A biblioteca precisa estar próxima ao posto de saúde, ao refeitório popular, ao ambulatório dentário. Próxima a escola, à creche. Só assim a população vai se apropriar do espaço. Dos espaços. Eu espero.

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Qual é o tipo de legado ou impacto que você espera que "Perifobia" e suas outras obras deixem ao cumprir essa missão de transmitir experiências?

Olha, eu espero que os livros encontrem espaço na vida dos leitores. Não só os que eu escrevo, mas qualquer livro, que alcance o leitor, que traga identificação. E em variados formatos.

Pensando na importância de eventos literários de grande porte como a Flip, considerando também visibilidade e acesso, qual a importância estratégica de autoras como você, que trazem as realidades periféricas para o centro do debate literário, estarem presentes nesses espaços de projeção nacional e internacional?

Acho que os eventos de grande porte têm que acontecer também nas periferias. Não só com mesas de debate, mas com oficinas de criação, com laboratórios de escuta, com captação de memória e de depoimentos que garantam a preservação das nossas histórias e a implantação de museus que exponham essa história. Os bairros deviam ser contemplados pelos grandes eventos de maneira igualitária, de modo que as pessoas que habitam os centros, interessadas em participar desses eventos, também experimentem se deslocar de seus lugares acessíveis e privilegiados. Enquanto isso não acontece, estar presente num evento de projeção é importante para preparar o caminho.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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