Celina, 5, morreu esperando socorro: por que infecção ainda mata no Brasil

Celina Cavalheiro Vianna da Rosa tinha 5 anos, a segunda dos cinco filhos da dona de casa Lucinara Rodrigues Cavalheiro, 32, e do motorista Juliano Vianna da Rosa, 35, família de Parobé (RS). Em 3 de setembro do ano passado, ela morreu após dois dias com febre alta, dor abdominal, pneumonia e infecção bacteriana. "Foi tudo muito rápido", diz a mãe.

Lucinara conta que na primeira visita ao Hospital São Francisco de Assis, o médico não examinou a menina nem pediu exames. Disse que seria gastroenterite e indicou um remédio. Em casa, vieram vômitos, e a dor já não passava com medicação.

De volta ao hospital, com dificuldade para respirar, ela ficou no ambulatório e depois foi para a sala vermelha, onde ficam pessoas em estado crítico. Raio-X, tomografia e exame de sangue detectaram pneumonia nos dois pulmões e infecção bacteriana.

"Até então, ela estava falando, caminhando com dificuldade, mas não sabia que era grave", conta a mãe. Medicada com antibiótico e precisando de suporte de oxigênio de alto fluxo, Celina parou de urinar. Ela seria encaminhada para a UTI de um hospital em Bento Gonçalves, porque ali já não teriam recursos para atendê-la.

Celina com a mãe Lucinara no hospital em Parobé (RS)
Celina com a mãe Lucinara no hospital em Parobé (RS) Imagem: Arquivo pessoal

A equipe que chegou para buscá-la só faria o transporte se a menina fosse intubada. "Disseram que a ambulância não tinha o oxigênio que ela estava usando", diz Lucinara. Mas, segundo ela, o médico recusou o procedimento. "A médica da ambulância saiu e falou que não podia arriscar a vida dela."

De madrugada, Celina voltou a ter febre alta. A mãe conta que a menina falou o nome dos irmãos e cantou o trecho de uma música que costumava cantar com um deles. Pouco depois, foi intubada e, em seguida, teve parada cardíaca. Foram 50 minutos tentando reanimá-la. "Ela não voltou mais."

Eu e meu marido ficamos sem chão, a gente não esperava isso, ela podia ter tido um atendimento melhor. Eles tiraram a chance da minha filha. Lucinara Rodrigues Cavalheiro

No laudo pericial, a causa da morte é "desconhecida". O perito escreve que, pelo "histórico de infecção respiratória, insuficiência respiratória, leucopenia e choque", além de "sangue em estômago, secreção amarelada em pulmões e petéquias (manchas na pele)", ela pode ter tido "síndrome hemorrágica, leucemia, choque séptico, entre outras".

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O choque séptico é o resultado mais grave da sepse, caracterizada pela pressão arterial muito baixa que leva ao mau funcionamento dos órgãos. O quadro é uma ameaça à vida. Lucinara busca reparação na Justiça contra o hospital.

Em nota a VivaBem, o Hospital São Francisco de Assis disse que, em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e com o Código de Ética Médica, não é permitida a divulgação de informações relativas a casos específicos".

Informou que dispõe de estrutura compatível com o nível de complexidade pactuado com o SUS e atende integralmente aos protocolos estabelecidos pelo sistema. "Mantemos programas contínuos de educação permanente voltados à qualificação da assistência prestada, buscando sempre a excelência no cuidado aos pacientes. Todos os desfechos adversos são criteriosamente analisados, com o objetivo de identificar se decorreram de fatores inerentes à condição clínica apresentada."

Sepse é urgente e perigosa

Silenciosa, grave e alto risco de morte. A sepse é a reação exagerada do organismo para combater uma infecção, que pode estar em um ou mais órgãos. Em vez de atacar apenas o agente infeccioso, o sistema de defesa se descontrola e afeta outras partes do corpo.

Resposta desregulada leva a disfunções. Alguns órgãos podem entrar em falência. "É extremamente grave e precisa ser corrigida o mais rápido possível", diz Gisele Borba, infectologista do Huol-UFRN (Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), da Rede Ebserh.

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Não se sabe exatamente o motivo desse exagero. Recém-nascidos, crianças, adolescentes, idosos e pessoas com doenças crônicas ou imunossuprimidas são grupo de risco. Pneumonias são a principal causa de sepse, além de infecções urinárias (especialmente em idosos e pessoas com sonda), de pele e na corrente sanguínea.

Tem alta mortalidade. Sepse é uma das principais causas de mortalidade no mundo e a principal em UTIs (unidades de terapia intensiva). Por ano, são 11 milhões de mortes, cerca de 240 mil só no Brasil.

Atrasos no tratamento impactam severamente o prognóstico e muitos sobreviventes ficam com sequelas funcionais, cognitivas ou psicológicas. Ludhmila Hajjar, cardiologista, intensivista e emergencista, professora titular de emergências clínicas da FMUSP

Rápida evolução. "Pode ser um quadro fulminante. Em pacientes que entram num quadro séptico que fica difícil controlar, evolui com outras disfunções, como renal e neurológica", diz Daniela Carla Souza, presidente do ILAS (Instituto Latino-Americano de Sepse).

Sintomas da sepse

Não há exame de imagem ou laboratorial que confirme o diagnóstico. Alguns indícios de infecção e resposta exagerada são:

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  • Aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial;
  • Febre ou hipotermia (temperatura abaixo de 35ºC);
  • Respiração acelerada;
  • Palidez;
  • Alteração do estado mental (confusão, sonolência).

Em exame de sangue, o sinal de alerta é para leucócitos acima de 12 mil ou abaixo de 4.000. Outro sinal é uma pontuação igual ou acima de 2 na SOFA (sigla em inglês para avaliação sequencial de falência de órgãos), que analisa funções respiratória, cardiovascular, do fígado, de coagulação, renal e neurológica.

Desafio em hospitais

Sinais e sintomas são inespecíficos. Eles aparecem em outras condições de saúde, como gripe, e os profissionais de saúde não reconhecem rapidamente a sepse. "Criança que já passou duas ou três vezes em emergência e o quadro não é valorizado, tem chance maior de, se for sepse, ter desfecho desfavorável", diz Souza.

O profissional que valoriza a impressão do familiar tem chance maior de fazer diagnóstico. Daniela Carla Souza, presidente do ILAS

Falta treinamento sistemático. Em pesquisa da plataforma Território Saber com 307 médicos, um terço deles afirma que o treinamento recebido é insuficiente. Metade diz ter conhecimento intermediário sobre o manejo da infecção. Há também desigualdade no conhecimento e preparo entre profissionais de diferentes regiões, e os protocolos são muitas vezes ignorados ou não implementados.

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Recursos insuficientes. Cerca de 65% afirmam que começam a dar antibióticos em menos de uma hora da identificação da sepse. Mas o principal entrave para uma resposta mais ágil é a disponibilidade de recursos no hospital. Hajjar também cita escassez de leitos de UTI, de monitoramento contínuo, déficit de exames laboratoriais rápidos e antibióticos adequados.

Resistência bacteriana

Sepse é uma das maiores causas de uso irracional de antibióticos. Com isso, os microrganismos criam resistência aos remédios, o que dificulta tratar as infecções.

Tecnologia é aliada. A Rede D'Or vem desenvolvendo uma inteligência artificial para combater e prevenir resistência antimicrobiana. "Desenvolvemos esse modelo de IA baseado em nossos bancos de dados, criamos padrões de resistência, susceptibilidade e sensibilidade de acordo com a porta de entrada do paciente, se emergência, centro cirúrgico ou ambulatório", explica Daniel Araujo Ferraz, head de inteligência artificial da Rede D'Or São Luiz.

IA é assistente, não substitui médicos. É mais um suporte para a decisão clínica a partir da análise de dados que seria humanamente impossível fazer em pouco tempo, dada a urgência de resposta a uma sepse, por exemplo. O modelo ainda está em fase de testes e validação das respostas por uma equipe de especialistas da rede.

Ação deve ser rápida

Protocolo prevê ações nas primeiras horas. Deve-se coletar amostras para exame (sangue, urina), iniciar antibiótico em até uma hora contra uma variedade de bactérias (mesmo que depois se confirme outra infecção), hidratar, monitorar oxigênio, coração e pressão arterial, identificar e controlar o foco infeccioso e dar suporte intensivo. "Monitorar muito de perto faz muita diferença", diz Borba.

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Kit sepse pode ajudar. O Huol-UFRN montou em cada unidade de emergência e internação uma caixa com itens essenciais para iniciar o protocolo, como frascos para coleta de exames e uma folha com orientações de antibiótico e doses. O esquema funciona desde 2019, e a equipe é treinada anualmente.

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