Michelle Prazeres

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Opinião

Mundo está ao contrário e até os rituais entraram no jogo da performance

"Rituais podem ser definidos como técnicas simbólicas de encasamento. Transformam o estar-no-mundo em estar-em-casa. Fazem do mundo um local confiável. São no tempo o que a habitação é no espaço. Fazem o tempo se tornar habitável."

Este é um trecho do livro "O desaparecimento dos rituais", de Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano cuja obra estudo na minha pesquisa.

Lembrei desta definição de Han para os rituais porque no final de semana passado vivi um casamento de amigos que foi um ritual. Fiquei pensando como o mundo anda ao contrário e ninguém reparou, como canta Nando Reis (na canção "Relicário" que, em minha história, ficou marcada na voz de Cássia Eller).

Eu botei reparo, porque esse mundo está tão ao contrário, que até os rituais estão sendo apropriados pela lógica da produtividade e do desempenho. Estão se desritualizando.

No casamento de sábado, antes de a banda começar a tocar, a mãe do noivo pediu a palavra e, com a voz embargada de emoção e improviso, recitou uma poesia.

Quando a banda tocou, o casal de amigos apenas se olhou, se convidou para dançar e dançou na pista com todo mundo observando.

Sem nenhuma pessoa precisar controlar o tempo, sem ninguém demarcando os horários certos para cada passo; com aquela festa fluindo como a dança.

E eles dançaram. E aquela música inteira durou o tempo da primeira dança. Com a magia que ela tem.
Depois, a vocalista da banda convidou as demais pessoas a entrarem na dança. E a festa foi acontecendo assim: algumas pessoas dançando, outras dialogando, amigos emocionados confraternizando, as boas conversas acontecendo nas rodas que se formavam. Tudo isso num lugar lindo no meio da natureza que nos convidava a desacelerar e a estarmos ali presentes. Inteiros.

E tudo isso reverberou depois para um senso profundo de pertença, de grupo, de comunidade, de "que bom que a gente tem a gente"; que bom estar na vida ao lado destas pessoas. Eu fui embora da festa e fiquei querendo estar mais ali, nesse lugar "quentinho" e cheio de amorosidade.

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Quando fiquei pensando no que a festa tinha reverberado como efeito em mim, pensei que algo tinha se movido, porque aquele tinha sido um ritual "de verdade": espontâneo, genuíno, sem pressa ou marcações de tempo. Um ritual que aconteceu como deveria acontecer. Que foi intencionado, construído, pensado, planejado mas que, na hora, aconteceu. Ou seja: dá para a vida ser assim.

Havia um horário para a festa começar e os convidados foram chegando aos poucos. Havia um tempo programado para a festa durar e ela foi acontecendo. Havia um horário marcado para o almoço começar e ele foi sendo servido. Havia um horário previsto para a banda tocar e ele foi chegando. Mas não havia pressa.

E como isso é possível? O que diferencia o tempo do ritual que é assim do tempo de um ritual cronometrado? Fiquei pensando como o ritual cronometrado (assentado na ideia de controle do tempo) é tão diferente do ritual experimentado (assentado talvez num plano em que cabe o tempo que dura, que deve ser cuidado, combinado, partilhado, mas onde cabe a nossa humanidade).

Vamos ficar no exemplo dos casamentos e como são estas festas hoje (e, claro, estou falando do meu lugar, das festas que observo e do que vejo acontecer no mundo, portanto, sim, parto de um viés). Contrata-se uma empresa, um cerimonial, que pensa todos os passos da festa; contrata-se uma pessoa para cuidar da comida, de tudo que vai ser oferecido aos convidados. Tem gente que tem até "wedding planner" (pessoa que planeja e produz o casamento). No final, aquele momento e aquele processo que eram para ser de desfrute viram momentos de tensão extrema e estresse.

A festa, que deveria ser uma celebração, justamente a ritualização de um amor, vira um grande script que precisa ser cumprido passo a passo, medido no tempo do relógio, com dezenas de etapas e metas a serem cumpridas; até os registros, as fotos obedecem a um roteiro previamente estabelecido sem muito espaço para algo diferente do que foi programado.

Ao fim, claro que existe um divertimento, uma confraternização nestas festas hiperprogramadas —claro que eles não são totalmente esvaziados de sentido (e pode ser que eu esteja exagerando ou romantizando, porque estou de fato muito tocada e sensibilizada por essa festa que vivi), mas é fato que algo se perde na festa-produto.

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Para dar outro exemplo, esse ano eu brinquei um Carnaval lindo (em SP), mas também experimentei um incômodo com a parte da festa que me pareceu organizada demais, cronometrada demais, planejada demais, controlada demais, característica que —de alguma maneira— "mata" um dos espíritos fundamentais dessa celebração, que é viva, brincante, ousada, livre, espontânea?

Algum encantamento existe e alguma divindade é convocada quando o festejo é o transcorrer do tempo e o suceder dos acontecimentos. Assim, vivos.

E fiquei pensando que talvez isso seja a dimensão da ritualização que Han pontua. A quem interessa que não ritualizemos mais a vida? A que projeto de mundo interessa que nossos rituais desapareçam? Se os rituais nos constituem como gente e como coletivo, a serviço do que está a sua extinção? Como podemos resistir com rituais, sustentar rituais e ritualizar o cotidiano encantando coisas simples, para criar disposição ritualística em nossos corpos e regenerá-los (para retreiná-los a serem capazes de comunidade) da exaustão provocada pela sociedade do cansaço e do desempenho?

São perguntas com as quais fiquei convivendo. E com as quais tenho convivido. Tenho a impressão de que se tivéssemos mais oportunidades de viver rituais e de ritualizar a vida, teríamos corpos mais dispostos ao coletivo, ao comum, às relações, aos vínculos e, portanto, a sermos gentes e não máquinas. Gosto da ideia de sustentar estas perguntas para buscar ritualizar, seja nas miudezas do cotidiano seja nas grandezas da vida.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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