Sem saber que são mãe e filha, mulheres em situação de rua viram amigas
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As adversidades da vida levaram Cristiane Duarte da Silva, 41, e Vitória Duarte Machado, 20, às ruas de Campinas (SP). As duas se conheceram em um abrigo da cidade há dois meses, e não imaginavam que, por trás do dia a dia em comum nas calçadas, havia um laço sanguíneo entre elas.
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"Meu pai e minha mãe se separaram e a minha mãe arrumou outro marido. Ela saía cedo para trabalhar e deixava meu padrasto tomando conta da gente. Ele entrava no meu quarto e eu falava para ela, mas ela dizia que eu estava mentindo, que eu queria tirar o marido dela. Peguei as minhas coisas e saí de casa. Eu tinha 14 anos", disse Cristiane.
Fora da casa da mãe, Cristiane passou a viver nas ruas. Ela conta que se relacionou com um homem com quem teve três filhos. Brigas familiares e o uso de drogas contribuíram para a separação.
"Eu era 'amigada' e tive meus filhos. Um dia minha sogra tirou eles de mim dizendo que ia passear na casa de parentes em Votuporanga. Ela disse que retornava e nunca mais voltou. A minha filha mais nova tinha seis meses. Eu morava no quintal deles (da família do marido) e me tiraram de lá, então fui para as ruas. Perdi o contato e não consegui mais achar eles", afirma Cristiane, que, depois, teve mais uma filha de outro relacionamento.
Vitória foi criada pelos avós paternos, junto com dois irmãos. Após a morte dos avós, passou a viver com tios e primos. Há pouco mais de dois meses, ela foi morar nas ruas. O pai dela também morreu.
Casei e não deu certo, daí voltei para a casa do meu tio (irmão do pai) para passar o Natal e Ano Novo. O meu tio ficou pegando no meu pé para conseguir um serviço e me colocou para morar com o meu irmão mais velho. Fui procurar um trabalho, não achei e acabei ficando na rua.
Vitória Duarte Machado

Mãe e filha
Cristiane e Vitória passavam o dia nas ruas e, à noite, dormiam no abrigo. O local tem capacidade para acolher 100 pessoas e conta com quartos masculinos e femininos, refeitório, lavanderia, espaço de convivência e notebooks conectados à internet para uso comunitário. Um detalhe no documento de identidade da jovem despertou curiosidade, mas não foi suficiente para revelar que as duas eram mais que amigas.
"A gente sentava e conversava algumas coisas e o meu coração acelerava, mas não entendia o porquê. Teve um dia que fomos tomar café da manhã e ela estava com o RG na mão e falou: 'Você sabia que a minha mãe tem o mesmo nome que o seu?'. Eu falei: é, mas eu não sou sua mãe, não tem uma pessoa só com esse nome no mundo", conta Cristiane.
Mas foi no último dia 6 que tudo mudou. Cristiane e outras 19 pessoas participaram da cerimônia de formatura da primeira turma dos cursos profissionalizantes promovidos pela instituição. A atividade foi registrada por uma reportagem da EPTV, afiliada da Rede Globo em Campinas, veiculada no telejornal local.
"O meu tio falou que estava assistindo uma reportagem e ela (a Cristiane) entrou, estava fazendo curso. Ele gravou a TV bem de perto, fez uma foto e um vídeo do rosto dela, e disse: 'A sua mãe está aí, caça ela aí dentro e tira uma foto'", disse Vitória.
A jovem fez uma foto de Cristiane e enviou para o tio, que não teve dúvidas em afirmar que ela era a mãe de Vitória.
Eu estava sentada esperando a janta e ela chegou e falou: 'Descobri três coisas, você é minha mãe, eu queria te conhecer, o meu tio viu a reportagem na televisão e disse que você é minha mãe'. Foi um choque! Eu chorei muito, não consegui dormir de tanta emoção, Cristiane Duarte da Silva
A mulher disse que tinha o desejo de rever os filhos, mas que, mesmo estando na mesma cidade, não conseguia encontrá-los. A última vez que ela viu Vitória, a menina tinha apenas três anos.
Sempre que ia à igreja pedia a Deus para conhecer meus filhos. No Dia das Mães uma criança falou que o que eu queria não era impossível. Me deu uma flor e disse para plantar, que eu ia colher bons frutos.
Cristiane
Vitória conta que cresceu com a vontade de conhecer a mãe e que quando foi morar nas ruas teve a informação que Cristiane andava pelo centro de Campinas.
"A família do meu pai falava muito mal da minha mãe. Como eu estava na responsabilidade deles não podia procurar", comenta.
Planos para o futuro
Os dias após a revelação de que eram mãe e filha têm sido de descobertas.
"Agora eu chamo a atenção dela e brigo por ela na rua. O medo de alguém vir e levar ela para longe de mim e nunca mais ver é grande. Essa noite, por exemplo, eu não dormi. Ela saiu e não voltou. Deitei para lá e para cá", disse Cristiane.
Vitória rebate a mãe: "Eu não obedeço muito. Essa noite ela entrou no albergue e eu não apareci. Só vim de manhã". A jovem disse que foi vender balas no farol.
Cristiane quer que a filha dê continuidade aos estudos. Vitória, que tem o Ensino Médio completo, deseja conseguir um trabalho e cursar Direito.
"Quero arrumar um serviço e alugar uma casinha para sair da rua e tirar a minha filha da calçada. Não quero que ela tenha a mesma sina que eu, que passe por tudo o que passei", afirma.
A educação é um dos caminhos que Cristiane também pretende trilhar. Durante a formatura nos cursos profissionalizantes de Informática e Confeitaria lembrou da infância.
"A minha mãe tinha o sonho de ver os filhos vestindo uma beca. Falei para ela que um dia ela ia ver. Ela não chegou a ver. Quando vesti a beca falei, a senhora está vendo, agora deve estar com orgulho de mim. Quero fazer outros cursos", conta Cristiane.
O reencontro das duas teve repercussão em Campinas. Ambas já foram abordadas nas ruas.
"Uma mulher falou que me viu na televisão e perguntou: 'Você fez dois cursos e por que não arrumou um emprego?'", disse Cristiane.
"Teve uma senhora que me viu e falou: 'Levanta daí e vai trabalhar", disse Vitória.
Criação de vínculos e apoio às pessoas em situação de rua
Robson Teixeira Gondim trabalha com pessoas em situação de rua há 34 anos. Ele fundou o Instituto Há Esperança, que mantém o abrigo onde Cristiane e Vitória se conheceram. A forma como as duas se encontraram é inédita na instituição, mas comum no dia a dia.
Tem aqueles programas de televisão que acham o pai e a mãe. Na televisão tudo é bonito, mas, no dia seguinte, cada um volta para a sua realidade. Laço afetivo se constrói no dia a dia. As coisas começarão a andar quando uma conhecer a outra, disse Gondim, que acompanha Cristiane há 20 anos.

Além de se descobrirem no cotidiano, mãe e filha terão outros desafios.
"O outro lado é o uso de entorpecentes. A Cris já vivia na rua há mais de 20 anos. Se a Vitória soubesse desde o início que ela era sua mãe, a Cris não teria deixado que ela começasse a usar."
A criação de vínculos também pode dificultar o processo de saída das ruas.
"A pessoa pode sair da rua hoje e seguir não tomando banho, por exemplo, pode não quebrar as amizades que construiu. No caso da Cris, que está há muitos anos na rua, ela precisa lutar contra esses vínculos", destaca.
O instituto, que conta com apoio de assistentes sociais e psicólogos, está acompanhando mãe e filha. Nesta semana, a entidade alugou uma casa para Cristiane e Vitória morar.
"Por mais que o nosso abrigo seja muito familiar, não é uma casa, não tem autonomia. Temos um emprego garantido para a Cris, que começará a trabalhar assim que sair das ruas", afirma.
Há Esperança
Gondim conta que, nos primeiros 15 anos de trabalho, retirava as pessoas da rua e encaminhava para clínicas de recuperação, porém não via resultado.
"Não entendia porque saíam da internação, então fui fazer faculdade para compreender. Lá entendi o valor do ser humano. Estudei dependência química por 20 anos. Amo o que faço", disse Gondim, que também é pastor evangélico.
Segundo ele, o enfrentamento à dependência química e à situação de rua dependem de políticas públicas integradas.
Não é possível tirar uma pessoa da rua sem a integração das secretarias de Segurança, Trabalho, Educação, Assistência Social e, principalmente, Saúde. Se não houver um plano para atender o dependente químico -- seja na rua, em uma comunidade terapêutica ou acorrentado na casa da mãe -- a nossa luta será continuar acreditando que Deus pode fazer um milagre ou simplesmente segurar na mão deles até que isso aconteça. É o que fazemos aqui.
Robson Teixeira Gondim
O Instituto Há Esperança mantém quatro projetos sociais em Campinas, um voltado para crianças e três para pessoas em situação de rua, e realiza mais de 1.100 atendimentos por mês. O trabalho é custeado com o apoio de doações.
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