Separadas na maternidade há 40 anos: 'Vi fotos dela e falei: é minha filha'
Elas passaram quatro décadas sem saber do paradeiro uma da outra. O reencontro veio de forma inesperada, por meio de um teste genético.
Bartira Vilela, hoje terapeuta em São Paulo, cresceu sem saber a origem de sua adoção. Aos 39, descobriu que havia sido dada como morta ao nascer. Já a mãe biológica viveu quatro décadas com a informação de que a filha não havia sobrevivido ao parto.
Agora, elas vão passar o primeiro Dia das Mães juntas.
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'Eu não sabia nada sobre minha história'
Bartira nasceu em 1985, em Curitiba, mas foi levada ainda criança para São Paulo por seus pais adotivos. Cresceu sem qualquer informação sobre sua adoção.
Fui muito cedo para São Paulo, ainda bebê, com meus pais adotivos. E eu não tive nenhum tipo de informação a respeito da história da adoção ou como havia acontecido, não sabia nada da minha história.
Bartira Vilela
Ela conta que seus pais adotivos se separaram quando ela tinha por volta de três anos. Inicialmente, Bartira ficou com o pai adotivo, mas ele acabou saindo do lar por problemas com a Justiça. Então, a menina foi viver com uma tia, irmã de seu pai.
Bartira conta que nunca disseram que ela não era realmente nascida na família que a criava, mas sentia que havia algo errado. Aos 17, depois de muito perguntar, a tia que a criou acabou revelando o que sabia.
"Ela me disse que meu pai [adotivo] chegou comigo, disse que eu era filha dele e que ninguém tinha de questionar, mas ninguém sabia de onde eu tinha vindo. No dia seguinte, ela morreu com um infarto fulminante", lembra Bartira.
'Senti um choque'
Foi apenas em 2021 que uma conversa com o colega de trabalho, Hélio Sodré, 37, enfermeiro que lidava com genealogia, mudou o rumo da história.
"Ele ouviu sobre a minha história, que eu não tinha nenhuma informação e não sabia nada. Na época, eu havia acabado de chegar de um evento com indígenas que falava exatamente sobre ancestralidade", diz a terapeuta.
O colega sugeriu e ela acabou fazendo um teste genético, em uma plataforma chamada Genera. O resultado, no entanto, demoraria a se transformar em algo concreto.
Por muitos anos, não foram localizados possíveis parentes com compatibilidade genética na plataforma —a Genera faz uma espécie de "match genético" com seus usuários.
Mas, em fevereiro de 2025, uma tia biológica de Bartira, a doméstica Inerci Lorine, 57, fez um teste genético por motivos de saúde. O objetivo era investigar possíveis doenças hereditárias, mas o resultado trouxe algo inesperado: uma correspondência genética altíssima com uma mulher desconhecida.
"Ela me mandou uma mensagem dizendo: 'Apareceu aqui para mim que é muito compatível, eu queria conversar com você'. Eu senti um choque naquele momento", lembra Bartira.
"Naquela noite, antes da mensagem, eu tinha uma viagem para Curitiba marcada para buscar informações [sobre sua origem] com a minha madrinha [da família adotiva]", lembra. Na manhã seguinte, a mensagem da tia biológica chegou. "Parece brincadeira, mas foi um sincronismo absurdo", lembra.
A correspondência indicava um parentesco próximo —a plataforma sugeria que elas poderiam ser irmãs, mãe e filha ou tia e sobrinha.
A partir dessa informação, a tia iniciou uma troca de mensagens com Bartira e começou a confirmar os dados. O ano de nascimento bateu. E, aos poucos, a história que por tantos anos esteve oculta começou a se revelar.
A viagem para Curitiba, inicialmente pensada para procurar pistas, virou o palco do reencontro. Lá estavam a tia e, para surpresa e emoção, também a mãe biológica.
Bartira descobriu que tinha uma família grande, com tios, primos e dois irmãos.
Se ela viveu sozinha por 39 anos, agora não vive mais. Agora ela tem família por todos os lados. Deus foi bom demais com a gente.
Inerci Lorine, tia de Bartira
'É a minha filha'
A mãe de Bartira, Inez Lorine, 59, médica-cirurgiã que hoje vive na Bolívia, foi até Curitiba para o reencontro com a filha há dois meses.
Cheguei a ver o rosto da minha filha [após o parto], o sinal que ela tem no rosto, dei o nome para ela. Então, quando minha irmã me mostrou as fotos dela, meu Deus, eu falei: é a minha filha é, a minha filha.
Inez Lorine, 59, mãe biológica de Bartira
Agora, quase 40 anos depois, Bartira se prepara para passar o primeiro Dia das Mães com Inez e viajou até a Bolívia, onde a mãe montou uma clínica de cirurgia plástica e vive com seus dois irmãos.
É uma mistura de muitos sentimentos. Somos duas mulheres se conhecendo, mas, ao mesmo tempo, entro em conflito com algo que vem da criança em mim --essa curiosidade sobre como é ter uma mãe. Tudo isso é muito novo para mim. Nunca tive essa convivência, e estar em contato com alguém que é, de fato, minha mãe é algo muito diferente.
Bartira Vilela
'É uma história de sofrimento'
Com os laços estabelecidos com a família biológica, Bartira pode enfim desvendar o capítulo do dia do seu nascimento. A gravidez de Inez ocorreu quando ela tinha 19 anos, após um abuso sexual. E o parto foi difícil, terminando em cesariana.
Estava sedada a maior parte do tempo, mas me lembro de um homem se aproximar de mim, perguntar meu nome, o nome que seria dado à minha filha, minha idade e outros dados. Achei que era alguém do hospital, hoje entendo que tenha sido o sujeito que levou Bartira de mim, mas manteve seu nome, de origem indígena, o nome que iria batizá-la.
Inez Lorine
Pouco tempo após o nascimento, Inez foi informada de que a filha não tinha resistido e morreu, mas o corpo nunca foi mostrado a ela.
E, nos documentos de Bartira, consta que ela foi registrada como nascida em casa, apenas com o nome do pai adotivo na certidão. Até hoje, não há explicações claras sobre como a adoção aconteceu, mas elas acreditam que houve um desvio dentro do hospital.
É uma história de muito sofrimento, muita impotência, na época eu era de uma família muito humilde, foi algo muito triste para mim e não soubemos o que fazer.
Inez Lorine
Sobre os sentimentos em relação ao passado, Bartira é clara: "Eu não tenho nenhum tipo de ressentimento. Quando contei para minha mãe adotiva que havia feito o exame, ela disse que recebeu a criança na porta do hospital e que não houve roubo. Mas é uma história mal contada, sem clareza."
Como funciona o teste genético
Ricardo Di Lazzaro, geneticista e cofundador da Genera, da Dasa, explica que os testes genéticos da Genera podem ser feitos por meio da coleta de sangue no laboratório, como se fosse um exame convencional, ou com um kit de coleta, com as instruções para a própria pessoa realizar a sua coleta por saliva.
"O DNA é analisado e é feita a leitura de aproximadamente 600 mil pontos do DNA de cada pessoa. Esses pontos trazem muitas informações: ancestralidade (africana, indígena, europeia); saúde e bem-estar, estabelecendo correlação com o risco para desenvolver doenças", explica o geneticista.
Outra parte da análise é a ferramenta Busca Parente. Todos que fazem o teste podem autorizar a inclusão dos dados nessa ferramenta, onde o DNA é comparado com os demais dados de toda a base da Genera, que atualmente tem o DNA de quase 500 mil pessoas.
Ricardo Di Lazzaro, geneticista e cofundador da Genera