'Mais um desabafo do que um date': pressa para ter intimidade toma relações

Já no primeiro encontro, a pessoa revela que foi traída, expõe o histórico familiar e comenta os medos mais profundos. Soa como excesso? Para quem está acompanhando as tendências de relacionamento no TikTok, essa cena tem nome: "floodlighting". É quando alguém compartilha detalhes íntimos e até traumáticos logo nas primeiras interações.

Foi o que aconteceu com a carioca Marina Rocha, 31. "A gente mal se conhecia e ele já contou que tinha sido traído três vezes, que não falava com o pai desde os 15 e que estava em terapia para lidar com crises de pânico. Tudo isso entre o pedido do vinho e a sobremesa", conta.

"Não é que eu não me importe com o que ele passou —pelo contrário, sou superaberta para conversas profundas, mas me deu uma sensação de atropelo. Me pegou desprevenida. Ficou parecendo mais um desabafo do que um date. Saí de lá exausta", diz Marina.

Para a psicóloga e educadora em sexualidade Ana Canosa, esse comportamento é um reflexo curioso e, ao mesmo tempo, preocupante dos nossos tempos. À primeira vista, parece que estamos diante de uma sociedade mais aberta, mais disposta a falar sobre sentimentos, dores e traumas —o que, por si só, seria positivo. Mas o problema está na intensidade e na velocidade como essas revelações acontecem.

Compartilhar detalhes íntimos e até traumáticos logo nas primeiras interações pode assustar
Compartilhar detalhes íntimos e até traumáticos logo nas primeiras interações pode assustar Imagem: Getty Images

Compartilhar tudo logo no início pode parecer um gesto de transparência, mas muitas vezes esconde uma necessidade profunda de validação, uma tentativa de acelerar a intimidade ou até um desejo inconsciente de testar os limites do outro. É como se, em vez de acender uma vela para iluminar aos poucos, a pessoa jogasse um holofote de uma vez só —o que pode até cegar, em vez de aproximar. Ana Canosa, psicóloga e educadora em sexualidade

Muitas das razões que levam as pessoas a compartilhar detalhes tão íntimos logo nos primeiros encontros até parecem fazer sentido. A mais comum é a ideia de que estão sendo honestas e facilitando o processo de escolha do outro. É o caso da paulista Betania Lins, 43. "Estou numa fase de não perder tempo. Prefiro falar tudo desde o início porque assim fica quem quer e não tem surpresa ou frustração no futuro", argumenta.

Contudo, Elídio Almeida, psicólogo pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e especialista em terapia de casal, diz que essa prática pode estar fortemente associada à ansiedade e à pressa que marcam os relacionamentos. "Vivemos em uma cultura imediatista, em que a construção de vínculos afetivos tem sido banalizada. As pessoas estão desaprendendo a importância do tempo, da convivência e da construção gradual da intimidade. Elas se apresentam como um 'pacote fechado', esperando que o outro aceite tudo aquilo de imediato —como se isso fosse suficiente para garantir o sucesso de uma relação", afirma.

Intimidade forçada pode gerar frustração para quem fala ou ser desconfortável para quem ouve
Intimidade forçada pode gerar frustração para quem fala ou ser desconfortável para quem ouve Imagem: Prostock-Studio/Getty Images/iStockphoto
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Na avaliação do especialista, existe ainda um mito muito presente: a ideia de que, ao encontrar alguém, é preciso rapidamente planejar um futuro, com namoro, casamento, filhos. Nesse impulso, compartilham tudo sobre si mesmas já esperando um "sim" que valide todo esse projeto idealizado. "Mas isso ignora o fato de que o outro pode não estar no mesmo ritmo, nem com a mesma intenção. Não raramente, mesmo que a outra pessoa aparente aceitar essa exposição toda, isso não significa, necessariamente, que ela está emocionalmente preparada ou comprometida para sustentar esse nível de intimidade", diz Almeida.

Segundo ele, às vezes, a pessoa só está interessada em um contato inicial, talvez até sexual, e diz sim para tudo por conveniência ou circunstância, e não por empatia ou envolvimento genuíno. Por isso, é essencial refletir: com quem estou compartilhando essas informações? Qual é o vínculo que já existe? Há abertura real e mútua para esse nível de entrega?

Frustração e desconforto

Os riscos emocionais de se expor muito, tão cedo, são diversos —tanto para quem fala quanto para quem ouve. "O principal, para quem se abre, é a frustração por não se sentir compreendido, acolhido ou correspondido. Já para quem recebe essas informações, o impacto pode ser igualmente desconfortável: muitas vezes, são detalhes íntimos e relevantes demais para um vínculo que ainda nem foi estabelecido. Isso pode gerar susto, apreensão ou até uma sensação de invasão, fazendo com que a pessoa decline da ideia de seguir naquele relacionamento", alerta Almeida.

Marcelo Ivanovitch
Marcelo Ivanovitch Imagem: Arquivo pessoal

E aí entra um ponto crucial: muitas vezes, quem se expôs tende a interpretar essa desistência como falta de comprometimento do outro, ou até como uma falha emocional: "ele é imaturo", "ela não sabe se relacionar", "não está pronto para algo sério". "No entanto, raramente se questiona se aquele era, de fato, o momento certo para aquela exposição. Não é incomum que essas pessoas, movidas pela ansiedade ou idealização, compartilhem informações profundas sem o devido lastro emocional construído. E, quando isso não é bem recebido, tendem a culpabilizar o outro, em vez de refletir sobre sua própria conduta", avalia o psicólogo.

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O carioca Marcelo Ivanovitch, 58, já viveu na pele os efeitos colaterais dessa pressa. Separado há 14 anos e aberto a um novo relacionamento, ele conta que busca uma conexão construída com calma e reciprocidade. Mas suas experiências recentes têm mostrado o contrário. "A coisa de, em muito pouco tempo, contar a vida toda —incluindo as experiências mais trevosas— acompanhadas de um 'e você?', como se a revelação tivesse um preço, me dá a sensação de corrida contra o tempo", relata.

Marcelo diz que também já ouviu pedidos apressados para definir o que está acontecendo entre os envolvidos, com justificativas como "a vida é curta". "Saí com uma pessoa que disse que, se em três meses não estiver morando junto, nem vale a pena continuar. E outra me perguntou, já no primeiro encontro, se eu queria ser pai, porque o objetivo dela de ter filhos era mais importante do que ter um relacionamento bom", diz.

Quero encontrar alguém para me relacionar, mas seguindo um processo que na minha cabeça faz sentido, que é conhecer e ver como as coisas evoluem naturalmente. Marcelo Ivanovitch

O jeito "certo" de criar intimidade

Há, porém, uma saída —e ela passa pelo resgate da vulnerabilidade com responsabilidade. "Conexão verdadeira se constrói como uma casa firme: com alicerces", enfatiza Canosa. Ela propõe o que chama de "vulnerabilidade gradual", em que ambas as partes se sentem à vontade para compartilhar suas histórias, dores e alegrias, em um ritmo seguro e respeitoso.

"Intimidade de verdade não se trata de contar tudo logo no começo, mas de poder ser quem se é com leveza e verdade, no tempo certo. E, acima de tudo, respeitar o tempo do outro também. Como dizia o filósofo francês Roland Barthes: 'O amor é uma fala, mas também é silêncio'. Às vezes, o silêncio e o tempo dizem mais do que mil confidências feitas antes da hora", diz a psicóloga.

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