Em livro, filha de Pelicot diz que nenhuma mulher da família foi poupada
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Única mulher dentre os três filhos de Gisèle e Dominique Pelicot, Caroline Darian convive com a dor "insuportável" de não saber se foi estuprada por seu pai, condenado por violações em série contra sua mãe.
Em meio às investigações da polícia que levaram à condenação de Dominique a 20 anos de prisão, Caroline foi chamada à delegacia para ver fotos suas, tiradas por ele, em que dormia, apagada, com uma calcinha que nem se lembrava de ter vestido.
Ao longo do processo, ela entendeu que, além de dopar sua mãe com remédios para que fosse estuprada por dezenas de homens, seu pai tinha violado outras mulheres da família.
Num diário publicado agora no Brasil pela editora Planeta, Caroline conta que, em março de 2021, quando já lidavam com as graves descobertas sobre seu pai, as esposas de seus dois irmãos foram chamadas à delegacia.
Elas foram fotografadas nuas, sem consentimento, em reuniões familiares. Dominique Pelicot instalou câmeras de disparo contínuo no banheiro e nos quartos de sua casa e nas dos filhos. E postou as imagens na internet.
No livro, intitulado "Nunca mais vou te chamar de pai", Caroline Darian afirma que "nenhuma mulher da família foi poupada", e que o "trauma se espalha como ondas de choque", com as vítimas indiretas geralmente sendo esquecidas.
Ela escreve que "ser filha da vítima e do algoz é um fardo terrível" e tenta elaborar o luto por meio da literatura, embora reconheça que não há palavras para o que enfrentou e enfrenta.
A obra ainda joga luz sobre outros temas pouco debatidos quando se fala em violência contra a mulher — por exemplo, a negligência médica, a falta de coordenação do poder judiciário com a atenção primária e a submissão química.
"Fenômeno social amplamente subestimado", o uso de remédios para anular a capacidade de reação das vítimas é "a arma preferida dos predadores sexuais", nas palavras de Caroline, que fundou uma associação chamada #NãoDurma para acolher sobreviventes desse crime.
Ela reforça que não se trata só de olhar para o uso das "drogas do estupro", mas para os medicamentos que ficam no armário de casa, como hipnóticos, antialérgicos, ansiolíticos e remédios para a tosse. E não é exagero, já que os dados mostram que o agressor, em geral, é uma pessoa próxima, que age na esfera privada.
"A submissão química é sorrateira, indetectável", escreve Caroline. "Ela dá aos abusadores uma sensação de impunidade tão grande que podem se passar meses, até mesmo anos, sem que alguém perceba. A vítima se torna um fantoche à mercê do agressor."
Sua mãe, Gisèle, que virou símbolo da luta contra a violência sexual depois de escolher que seu caso fosse julgado aos olhos do público, por pouco não passou o resto da vida sendo submetida a (mais) estupros em série.
O livro de sua filha deixa claro que, como ela, é provável que existam milhares de mulheres pelo mundo. O algoz, na maior parte das vezes, está dentro de casa.
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