Após prisão e punições, cineasta iraniano leva humor e drama a Cannes

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Em um ano sem favoritos absolutos, "It Was Just an Accident" (Foi Só um Acidente, ou mal-entendido, em tradução livre) surge com um forte candidato à Palma de Ouro do Festival de Cannes.
Primeiro filme do diretor iraniano Jafar Panahi depois de ele ter sido proibido por 14 anos de deixar seu país, o novo trabalho surge não só como um ótimo filme, mas também como um recado a um Estado que encarcera cidadãos por atos não criminosos, como assinar um abaixo-assinado. Uma assinatura, por exemplo, em apoio às mulheres que protestaram nas ruas do país em 2022, pedindo direitos e justiça depois que a jovem Mahsa Amini morreu sob a custódia do Estado após ser presa pela polícia moral do Irã por não usar adequadamente o hijab (o véu).
Para pontuar a relevância do filme e também tratar mais de sua trama, é importante entender que ele traz muito da experiência do cineasta e de histórias que ouviu no período em que passou na prisão.

Panahi, que em 2010 foi proibido de viajar para o exterior e de fazer filmes, foi preso em julho de 2021. Isso tudo não só por seu cinema combativo, mas também por ter questionado publicamente a prisão de outros dois cineastas iranianos: Mohammad Rasoulof (Urso de Ouro em Berlim 2019 por "Não Há Mal Algum", que questiona a pena de morte no Irã e de "A Semente do Fruto Sagrado", prêmio especial em Cannes 2025 e indicado ao Oscar de melhor filme internacional) e Mostafa Al-e Ahmad.
Na época, o cineasta foi detido ao ir ao escritório do promotor público responsável pelo caso. Como resposta, o governo iraniano decidiu reativar uma sentença que estava suspensa, em que se previam seis anos de detenção desde 2010 (quando a determinação da proibição de viajar e filmar foi dada) —parte da pena ele cumpriu em prisão domiciliar em Teerã.

Em 2023, depois de uma greve de fome, Panahi foi solto e, recentemente, recuperou o direito de viajar. Por tudo isso, a première de "It Was Just an Accident", na última terça-feira, teve sabor de justiça para a comunidade cinematográfica internacional e, principalmente, para Panahi e para os iranianos que ousam reagir ao despotismo do Estado. No entanto, o cineasta colocou sua alegria em perspectiva.
"Eu ganhei a autorização de viajar de novo. Estou aqui com vocês e recebo esta alegria, mas não sinto a mesma emoção. Como posso estar feliz? Como posso ser livre enquanto, no Irã, ainda existem tantos dos maiores diretores e atrizes do cinema iraniano que, por terem participado e apoiado os manifestantes durante o movimento Femme Liberté, hoje não podem trabalhar?", afirmou o cineasta ao final da première.
Em "It Was Just an Accident", ele conta a história de Vahid (Vahid Mobasseri), um mecânico que ficou preso por anos e reconhece não a cara, mas o passo do oficial que o torturou na cadeia. Vahid e seus amigos tinham os olhos cobertos por uma venda toda vez que eram torturados, mas ele reconhece perfeitamente os passos do procurador, que perdeu uma perna e tem o passo marcado pela pausa que faz ao caminhar.
É este som que o mecânico reconhece, mas ele precisa confirmar que se trata realmente do "Perna de Pau" ou de "O Coxo", como eles o chamavam. Isso porque seu plano é enterrar o oficial vivo como vingança. Mas Vahid é consumido pela dúvida e pede a ajuda de seus companheiros, que foram presos ao protestar por melhores condições de trabalho e pelo pagamento do salário atrasado há oito meses.
Nesta busca, ele vai atrás de Shiva (Maryam Afshari), uma fotógrafa de casamentos que não usa o hijab. Para ela, é o cheiro do "Perna de Pau" que é inesquecível. Já para Hamid (Mohamad Ali Elyasmehr) é a voz do torturador que é incomparável. Ele não quer esperar, não tem dúvidas e quer matar o algoz imediatamente. Ainda surge um casal de noivos, que está sendo retratado por Shiva, cuja noiva também sofreu nas mãos do torturador.
Ainda que o tema seja muito real e pesado, Panahi é um autor tão genial que o filme tem um humor que nasce do absurdo. O carro em que Vahid esconde "Perna de Pau" roda por Teerã enquanto eles tentam decidir o que fazem. Há espaço para um dilema moral que envolve também a mulher grávida do oficial e sua filha pequena. Quando a menina liga para o pai pedindo ajuda, pois a mãe está entrando em trabalho de parto, o caos e o humor se instalam.
Quando a realidade é surreal, o humor nasce quase naturalmente, mas Panahi, que rodou muitos de seus filmes em carros, "pois eles são lugares seguros para quem não pode por um tripé na rua e ser notado", sabe criar tensão e fazer rir ao mesmo tempo. Ao contrário de outros trabalhos mais observativos e silenciosos do cineasta, "It Was Just an Accident" tem um ritmo mais acelerado, muitos —e rápidos— diálogos e gêneros que se entrelaçam.
"Eu fui proibido de fazer filmes por 20 anos e isso foi um grande choque. A solução que eu encontrei foi fazer filmes em segredo. Foi uma forma que encontrei de homenagear o cinema. Muito introspectivo e filmar a mim. Agora, esta proibição foi suspensa e eu me voltei para o mundo", declarou o diretor que levou o prêmio de melhor roteiro em Cannes 2021 por "Três Faces", mas sem comparecer ao festival.
Quando o também ótimo "Sem Ursos", que levou o prêmio do júri no Festival de Veneza de 2021, Panahi também não pôde estar presente. Cineastas de todos os continentes protestaram e pediram sua liberdade. O filme trouxe um sinal do momento de crise e repressão que o Irã passava e, principalmente, os que questionam o sistema. O risco continua, mas Panahi não se mostra preocupado com represálias.
"Ainda que esteja correndo o risco de novas proibições pessoais, são estes filmes que eu quero fazer. Em geral, você tem que submeter os filmes ao crivo do Estado e, se eles proíbem, não posso fazer. Então, minha forma de fazer filmes não mudou muito. Vamos ver onde isso vai me levar", declarou o diretor em conversa com a imprensa na última quarta-feira em Cannes.
Panahi surge no festival cheio de energia, com um roteiro inteligente, que traz as marcas de anos e anos de perseguição e, claro, traumas e rancores que a experiência na prisão deixaram. Mas traz também a certeza de que a luta pela liberdade de ser e se expressar vai continuar em seu país. Prova disso é como as mulheres, no novo longa, não usam o hijab e isso não é uma questão, mas, sim, um fato consumado.
"Depois do movimento das mulheres, houve uma mudança estrutural no Irã. Eu mesmo estava preso e não pude acompanhar. Por cerca de três meses, houve uma epidemia na prisão, eu tive uma reação alérgica e consegui, depois de três meses, autorização para ver um médico. Quando eu saí, entendi que a vida tinha mudado totalmente. As mulheres estavam na rua sem o véu. Como cineasta, que retrata a realidade, as ruas de Teerã, isso está naturalmente no filme. Eu não pedi que as figurantes usassem véu ou não. Elas vieram como queriam. E várias vieram sem véu", contou.
Sobre a coragem que tem de continuar fazendo filmes que questionam o sistema, Panahi não aceita o rótulo de herói. "Eu me comporto exatamente como outros iranianos. As mulheres iranianas são proibidas de sair sem lenço, mas elas fazem isso do mesmo jeito. Não importa. Não estou fazendo nada mais heroico do que qualquer iraniano. Depois disso, eu vou voltar para o Irã e me perguntar sobre o que o meu próximo filme vai ser."
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