Com primeiro 'Airbnb' e 'mochilão', Veneza ama e odeia turistas há 800 anos
Felipe van Deursen
Colaboração para Nossa
20/06/2025 05h30
Em abril, Veneza reinstituiu a prática de cobrar pela entrada de turistas em dias de pico. Vale apenas para aqueles que não vão dormir na cidade, justamente os que constituem a grande maioria dos visitantes.
A ideia é dissuadir o estilo "mordi e fuggi", versão italiana do nosso "bate-volta". A cidade não quer mais tantos turistas que chegam, gastam pouco e vão embora no fim do dia.
Quem agendar com antecedência paga 5 euros (cerca de R$ 32), mas quem deixar para a última hora desembolsa 10 euros (R$ 64). Este ano, a medida será aplicada durante 54 dias.
No ano passado, Veneza se tornou o primeiro grande destino turístico global a cobrar pela entrada. O sucesso foi relativo, mas a cidade decidiu dobrar a aposta em 2025.
Em 2024, foram apenas 30 dias de cobrança, e sem o adicional para a turma que deixou para comprar o ingresso em cima da hora. Ao todo, 485 mil pessoas pagaram a taxa, o que rendeu 2,4 milhões de euros (R$ 15,4 milhões) à cidade.
Políticos de oposição declararam que a medida não adiantou para nada. De fato, em alguns dias, mesmo com a cobrança rolando, Veneza recebeu mais gente do que em 2023. "Não dá para governar uma cidade complexa como se ela fosse um parque de diversões com ingressos à venda", declarou uma vereadora.
Enquanto os críticos afirmam que cobrar 10 euros não vai afastar o turista decidido a entrar, os defensores alegam que não se trata de dinheiro, mas de controle. Para a prefeitura, a medida oferece ferramentas úteis para monitorar o fluxo de visitantes ao longo do ano.
Todos os anos, mais de 5 milhões de turistas passam pelo menos uma noite em Veneza, segundo dados oficiais. Mas as estimativas da multidão do bate-volta chegam a 30 milhões de pessoas.
É uma massa de gente que afugentou a população ao longo das décadas. Se o centro histórico tinha mais de 170 mil habitantes nos anos 1950, hoje eles não chegam a 50 mil.
Veneza virou símbolo do turismo excessivo e está na linha de frente para combatê-lo - ao mesmo tempo que luta para não afundar. É um desafio tremendo, mas essa relação com o turismo, ora tensa, ora amistosa, vem de longa data.
Veneza não é só o símbolo do turismo excessivo. Ela está no centro da própria história do turismo.
Peregrinos e foliões
Na Idade Média, os fiéis cristãos que saíam de diversos cantos da Europa em direção à Terra Santa e paravam em Veneza seriam os primeiros turistas da cidade. Muitos acabavam passando mais tempo lá do que em Jerusalém.
Isso levou a investimentos em hospedagem, alimentação e entretenimento. Veneza queria que aquelas pessoas passassem mais tempo ali.
Em 1229, o Senado passou a regular os navios e os guias que traziam os peregrinos. Havia também um investimento no boca a boca, segundo Emin Altun, pesquisador da Universidade de Veneza especializado nos impactos do turismo de massa, em um artigo a respeito.
Tratar bem os visitantes e oferecer a eles entretenimento de qualidade elevou a imagem de Veneza como uma cidade próspera e atraente. Na época, ela iniciava sua era de ouro como capital de uma poderosa república que reinaria sobre os mares da Europa do Sul.
O auge dessa festa era o famoso Carnaval. Com roupas, máscaras e joias extravagantes, os venezianos eram atração garantida para os estrangeiros.
Mas a Praça de São Marcos também parava em outros meses. Festas em abril, maio e junho alegravam o calendário e, conforme os peregrinos passavam mais tempo, maior ficavam esses eventos: um festival que durava 15 dias se alongou para 45.
Tudo para agradar os visitantes (e fazê-los gastar mais). Às vezes, os peregrinos lotavam a cidade e os aristocratas, sem ter onde se hospedar, acabavam ficando em albergues como os plebeus.
"Os venezianos despertaram para o potencial em virtude da alta demanda", segundo Altun.
Desenvolveram o primeiro 'sistema Airbnb' daquela época, com mais de 5 mil casas particulares hospedando visitantes.
Outra inovação veneziana foi a criação de cruzeiros turísticos. Mestres do comércio marítimo, eles passaram a oferecer aos peregrinos rotas até Jafa (hoje parte de Tel Aviv, em Israel), passando por diversos portos do Mediterrâneo.
Gondoleiros e prostitutas
No século 16, os ventos mudaram. Os otomanos conquistaram Jerusalém em 1517 e passaram as décadas seguintes travando guerras contra as potências europeias, Veneza entre elas.
A navegação mercante deixou de ser um negócio seguro para os venezianos. Os peregrinos passaram a chegar cada vez menos.
Mas a cidade em si continuava atraente para o viajante estrangeiro. Entre os destaques, havia um bem estabelecido mercado de sexo.
A prostituição era uma prática regulamentada desde 1360, com casas específicas para a atividade, localizadas atrás do Mercado de Rialto. Altun lembra que outras cidades europeias tinham mais profissionais do sexo, mas Veneza se destavaca, especialmente no Carnaval, graças à liberdade e ao anonimato oferecido pelas máscaras.
Outra atividade que cresceu com o fluxo de turistas foi a dos gondoleiros. Nos séculos 15 e 16, eles estavam tão em alta que muitas pessoas largavam seu trabalho nos estaleiros para ganharem mais levando os visitantes para cima e para baixo pelos canais.
Mas, ainda naquele século, veio um baque ainda maior que as guerras marítimas. Em 1575, a peste chegou à cidade, matando cerca de um terço da população.
Grand Tour: 'mochileiros' e jogatina
Veneza voltou a atrair visitantes internacionais no século 17. Não eram mais peregrinos rumo à Terra Santa, mas homens jovens aristocratas, que faziam grandes viagens pelo continente, em uma espécie de iniciação cultural.
Era o Grand Tour, um "mochilão da nobreza" para assimilar a grandeza, a beleza (e muitas vezes a decadência histórica) de diversas cidades europeias. Para essa elite, Veneza era o ápice do roteiro.
A cidade se tornou um Carnaval constante. De janeiro a junho, havia somente 40 dias sem diversão.
Jogos de azar rolavam soltos na rua, até que o governo, de olho nos gastos dos turistas, licenciou a jogatina privada. Ingleses e outros europeus do norte, os típicos jovens do Grand Tour, passaram a frequentar esses cassinos elegantes, onde confabulação política e prostituição se disseminavam na atmosfera misteriosa criada pelo uso de máscaras de Carnaval.
Além do sexo e do jogo, os visitantes se deslumbravam com a ópera, uma instituição veneziana. No século 18, a cidade chegou a ter 388 casas do tipo, segundo Altun.
A busca pelo engrandecimento pessoal, pelo mergulho na Antiguidade Clássica e pelo alargamento das referências culturais era o grande motivador do Grand Tour.
Pelo menos "oficialmente".
Na prática da vida real, segundo os diários desses jovens, a diversão e certa libertinagem tinham um peso considerável. Poucos atravessavam o continente para passar o desagradável e úmido inverno veneziano somente para assistir a óperas.
Diferentemente de outras cidades europeias, o erotismo tinha mais força no Carnaval veneziano. Em teoria, qualquer homem poderia acabar na cama de uma mulher da classe alta ou até uma nobre.
Passeios de gôndola poderiam terminar na casa das cortesãs. Muitas, aliás, tinham acordos com os gondoleiros, para que ambos faturassem com o turismo sexual.
O historiador britânico Jeremy Black explorou esse lado menos idealizado do Grand Tour no livro "Italy and the Grand Tour" ("Itália e o Grand Tour", inédito no Brasil).
Há diversas passagens de diários de nobres ingleses e futuras lideranças políticas enaltecendo as "virtudes" das italianas.
Um deles, John Stackhouse, escreveu, em 1772: "Os cassinos, uma espécie de casa particular frequentemente usada para esse tipo de compromisso, estão tão em voga que quase nenhum homem de classe alta deixa de ir. Supõe-se que o Estado, por política, não apenas tolera essa tendência à devassidão como a incentiva, para evitar que seus cidadãos se ocupem demais com assuntos de governo."
Segundo Black, os críticos estavam certos em reclamar que alguns turistas estavam mais interessados em sexo, jogo e bebida do que no autodesenvolvimento. "Mas sua experiência também foi moldada pelas oportunidades dadas pelos italianos", escreveu.
David Allan, um escocês que buscou a carreira artística na Itália em 1767, ilustrou essas "oportunidades". Um de seus desenhos mostra um jovem viajante chegando no Carnaval de Roma e sendo recebido por cantores, vendedores, pedintes e dançarinas (uma delas exibindo, atrevidamente, as pernas).
Aquela era a Veneza da boemia, da socialização ao ar livre, dos encontros na Praça São Marcos. Era a Veneza do Florian, um dos cafés mais antigos do mundo (300 anos completados em 2020).
Até que uma névoa de decadência se assentou sobre a lagoa. Em 1797, a união entre Napoleão Bonaparte e os Habsburgo austríacos liquidou a república.
A era do Romantismo
Veneza caminhava para viver do turismo, segundo alguns autores, mas a queda da república mudou os rumos. Empobrecida, melancólica, soturna, ela passou a atrair outro público.
O Grand Tour dos riquinhos procurando conhecimento e dos playboys buscando farra passou a dar lugar, do início do século 19 ao início do 20, a uma procissão de artistas sensíveis, muitos deles geniais.
O Carnaval passou, e essa longa "Quaresma" acabou ficando tão famosa quanto, justamente por causa desses turistas. Lord Byron, Henry James, Charles Dickens, Claude Monet e Thomas Mann, entre outros, estiveram em Veneza e inseriram a cidade em seus poemas, romances e telas.
A cidade foi incorporada ao novo Reino da Itália em 1866, mas a decadência seguiu. A poluição da Revolução Industrial e a sujeira da água criaram a taxa de mortalidade mais alta do país.
Gondoleiros, antes disputados por turistas, passaram a importuná-los. O excesso de profissionais do ramo e pouca demanda faziam com que eles disputassem os clientes a tapa, com abordagens grosseiras.
O turismo moderno
Somente após a Primeira Guerra Mundial, conflito que teve longas batalhas perto da cidade, na fronteira com a Áustria, Veneza despertou novamente para o turismo. Novas políticas públicas investiram na cidade e em sua imagem, recriando a mística de "destino como nenhum outro".
Veneza aos poucos deixou de ser uma cidade repleta de museus e atrações culturais para se tornar, ela mesma, um museu a céu aberto. Nas últimas décadas, com o aumento de passagens aéreas mais em conta e a proliferação do chamado turismo de Instagram, as massas humanas se multiplicaram.
Para muitos críticos, com esses visitantes veio o pior do turismo excessivo. "É a apoteose da cultura do descartável", escreveu Finlay Darlington-Bell, pesquisador da literatura medieval italiana, em uma publicação veneziana.
Para ele, esses turistas investem pouco nas comunidades que visitam. Em vez de lucro acabam trazendo prejuízos.
A morte pode chegar a Veneza não por causa de incursões de príncipes Habsburgo enlouquecidos ou ataques otomanos, mas pelo consumo irracional de multidões de turistas que veem Veneza como pouco mais do que um dos muitos lugares para marcar na 'lista de desejos'.
A conscientização pode ser um alento. Afinal, existem turistas e turistas - e no Grand Tour não era tão diferente assim, pelo menos não nos tipos de comportamento. Havia os mais interessados e sensíveis como também havia os farristas inconsequentes.
No Grand Tour, "os relatos mais perspicazes e bem informados daqueles que viajavam a lazer foram escritos por turistas mais velhos", segundo Black. "A correspondência de jovens turistas e de seus guias tratava de dívidas, jogos de azar e compra de roupas."