Josimar Melo

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Opinião

Lugar de mulher é na cozinha, provaram Julia e Martha... O de homem também

Passei o fim de semana imerso no universo de Martha Stewart, a apresentadora, ex-editora de revistas, autora de cem livros (!) de culinária, decoração, jardinagem. Ela criou um império bilionário de mídia, alvejado quando foi para a cadeia; mas hoje, livre e atuante nos seus 83 anos, segue uma referência de estilo de vida nos Estados Unidos.

A culpa pela minha recaída é da grande escritora americana Joan Didion (1934-2021). Ou mais precisamente da revista The New Yorker que, ao completar cem anos, vem evocando grandes textos de sua história. E um deles é o artigo de Didion, do ano 2000, sobre Stewart.

Foi surpreendente que a autora, normalmente austera, se metesse a falar sobre uma celebridade que muitos associavam a uma ideia conservadora e conformista de celebrar o papel da mulher como a "rainha do lar". Mas foi justamente este o ponto.

O gancho da matéria foi Stewart ter virado bilionária ao abrir, na bolsa de valores, o capital de sua empresa multimídia.

Para Didion, antes de ser uma mera propagadora do papel submisso da mulher na estrutura familiar e social, Martha mostrava, com seu próprio exemplo, que através da atenção aos detalhes do estilo de vida na família, a mulher poderia ser poderosa e rica.

Precursora: Martha Stewart na cozinha, em foto de 1976
Precursora: Martha Stewart na cozinha, em foto de 1976 Imagem: Getty Images

O título original do artigo era "Everywoman.com": no lugar de uma "supermulher", Martha era prova de que qualquer mulher ("every woman") poderia vencer nos negócios, escandalizando o mundo masculino e o conservadorismo feminino.

Críticas parecidas foram feitas a outra grande "influenciadora" americana precoce, a autora de culinária (e pioneira apresentadora de TV) Julia Child. Ela queria ajudar a mulher a otimizar seu tempo e assumir seus talentos no terreno que socialmente lhe era destinado, mas foi também acusada de conformista.

São personagens diferentes. Julia ensinava a importância da excelência num ofício então ligado aos chefs (homens). Mas o fazia sem afetação: seus livros eram precisos, mas na tela ela era desbocada, e quando errava ao vivo instava o público a relevar, dar um jeitinho — afinal, ali quem manda é a cozinheira.

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Como Martha depois, Julia venceu num mundo dominantemente masculino: apresentadores de TV no início dos anos 1960 eram geralmente homens, e quando mulheres, sempre jovens e belas. Julia estreou com mais de 50 anos, estabanados um metro e noventa, voz de gralha. E se tornou um sucesso, inclusive comercial.

Julia Child: iniciou na TV aos 50 anos e ensinou milhões a cozinhar
Julia Child: iniciou na TV aos 50 anos e ensinou milhões a cozinhar Imagem: Getty Images

Numa sociedade ultramachista como nos tempos de Julia, e mesmo de Martha, a fronteira entre o empoderamento delas e o conformismo que possa estimular nas mulheres pode ficar nebulosa. Mas não é difícil entendê-las e admirá-las.

Didion escreve: "os sonhos e os medos que Martha Stewart explora não são de domesticidade 'feminina', mas de poder feminino". Mesmo porque muita gente a seguia não por "prendas domésticas", mas para iniciar um negócio, trabalhar — "como um homem"...

O artigo de Didion é de 2000, quando Martha ficou bilionária. Em 2004 ela foi processada por envolvimento numa fraude fiscal; foi inocentada por isto, mas condenada a cinco meses de cadeia por mentir para a Justiça. O valor de sua empresa despencou e ela a vendeu por um preço ínfimo.

Mas deu a volta por cima. Anos depois, do nada, estreou um programa de culinária com... o rapper maconheiro Snoop Dogg. O documentário "Martha", da Netflix, mostra esta espantosa e engraçada virada.

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Parceria improvável: em seu 'retorno', Martha estreou um programa de culinária com o rapper Snoop Dogg.
Parceria improvável: em seu 'retorno', Martha estreou um programa de culinária com o rapper Snoop Dogg. Imagem: Getty Images

Hoje, rica e consultora em sua antiga empresa, estreia um novo programa com José Andrés, chef de ótimos restaurantes e com intenso trabalho humanitário.

Andrés, como tantos chefs homens, faz sua vida na cozinha, inclusive ensinando mulheres (e homens) a cozinhar em casa — homens também cozinham, inclusive como negócio. Seu sucesso financeiro nunca incomodou da mesma forma que o de Martha Stewart.

Martha segue sendo a "influenciadora" que sempre foi. Mas influenciadora honesta: suas receitas (dos pratos ao tricô) funcionam.

E fica claro que seus produtos são um negócio, ao contrário de usar batons, roupas ou ingredientes como propaganda disfarçada (e lucrativa).

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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