Julián Fuks

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Opinião

O desastre cotidiano da linguagem

Horas, dias, semanas passa o escritor trancado em palavras, obcecado com a construção da frase precisa, a frase que enfim diga aquilo que a vida cala. Nenhuma criação o satisfaz, o sentido é esquivo, o som vacila, nenhuma ideia se deixa capturar por letras enfileiradas. O escritor não quer mais viver o desastre inevitável da linguagem, não quer mais sofrer ante a frase em desordem, por isso decide escapar de casa.

Sai e o que encontra de imediato também é feito de palavra, é a frase absurda que algum legislador resolveu inscrever em todos os elevadores do país. "Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no andar". O escritor se irrita com a colocação pronominal, claro, sabe que "se encontra" soaria melhor, mas o que o perturba é o uso estúpido de "o mesmo", arcaico e insensato. Pergunta-se o que aconteceria se fosse outro, e não o mesmo, o elevador parado em seu andar. Seria ele capaz de notar a troca? Entraria porventura em outra dimensão, ao se encerrar num cubo metálico diferente do habitual?

Não quer mais pensar em bobagens, vai almoçar no restaurante da esquina, lugar de comida honesta e saborosa. Sobre o balcão em que deve servir seu próprio prato, repara na inscrição em letras redondas: "Evite falar sobre o bufê". O escritor não é idiota, sabe que o restaurante só quer impedir que se converse em cima do bufê, para reduzir a profusão de perdigotos. Mas seu olhar para a ambiguidade volta a assediá-lo: então a comida do lugar é um segredo, um dado a ser ocultado? E, ante a crônica que começa a cogitar, deve se sentir culpado por comentar que aquele é um bufê saboroso?

Um pouco obnubilado, o escritor termina de almoçar e resolve clarear os pensamentos numa caminhada. Pouco ou nada consegue se aliviar. Por toda parte vai cruzando com subentendidos que ninguém deveria entender, com sentenças incertas, dúbias, desastradas. "Não temos tolerância", avisa um estacionamento, e sente-se a bruta intransigência de seu proprietário. "Compro seu carro, mesmo alienado" - melhor me engajo antes que perca meu transporte. "Deixe a esquerda livre", eis uma disposição insofismável, o escritor concorda, garantia de qualquer sociedade democrática.

E então vem a sequência de frases religiosas em adesivos de para-brisa, aquelas que sempre o deixaram um pouco perdido, um pouco intrigado: "Se Deus é por nós, quem será contra nós?", "Não há amor além do Amor", "Ninguém consegue derrotar aquele que Deus escolheu para vencer". O escritor as lê e é como se visse desmoronar toda sua formação de crítico literário: como compreender frases assim tortuosas? Que poder maior que Deus se investe contra nós para que assim estejamos, o mundo em tal desordem? Quem afinal Deus decidiu derrotar? E de que maiúsculo amor falamos?

O escritor já está distante de casa, distante de si, de qualquer clareza, o escritor nem sabe onde está. Sobe num ônibus que leva o nome de seu bairro e não decifra agora se quer calar ou gritar. Só não quer ler mais nada, nada interpretar, mas eis que a placa surge aos seus olhos, impossível de ignorar: "Fale ao motorista somente o indispensável". O escritor está diante do apelo essencial: a cada semana, cada dia, cada hora é isso o que o convoca, o imperativo de falar o indispensável, de alcançar a palavra necessária para si e para a humanidade. O motorista está ali, talvez estranhe sua paralisia, talvez aguarde sua palavra, mas de novo ele silencia, de novo se retrai.

Chega em casa derrotado, maldizendo a própria sina. Não aguenta mais, quer se livrar desse estranho vício de contemplar detidamente cada frase, de interrogá-la até que perca o sentido, até que afirme o que nunca quis afirmar. Não aguenta mais sua própria mesquinhez interpretativa, só queria que isso acabasse. Mas agora tem outra crise a resolver, de ordem parental, é sua filha de cinco anos quem alardeia sua revolta. "Uma mão lava a outra", ela cantarola, "de segunda, terça, quarta, quinta ou sexta-feira". Escutem, ela diz, o cantor não canta que lava as mãos aos sábados ou domingos. E assim será para ela agora.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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