Áreas (des)protegidas: unidades de conservação só no papel

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Se você acha que as unidades de conservação nasceram apenas da boa vontade em proteger a natureza, sinto dizer: a história não é tão bonita assim. Muitas delas surgiram de maneira abrupta e pouco harmoniosa — mas isso não as torna menos importantes.
Diversas áreas de proteção ambiental, de diferentes tipos e níveis de proteção, foram criadas ainda durante a ditadura militar, principalmente para "ocupar" e "proteger" a Amazônia e outras regiões consideradas "vazios demográficos". No século passado, muitas UCs foram estabelecidas sem qualquer diálogo com os territórios afetados, sobrepondo-se a comunidades tradicionais que, de uma hora para outra, se viram ameaçadas de expulsão.
Ainda assim, essas áreas são essenciais. Em muitos casos, a pressa em criá-las foi motivada pelo desejo de evitar algo ainda pior: a apropriação privada dos territórios. Foi o que aconteceu na criação da Reserva Biológica da Praia do Sul, em Angra dos Reis (RJ), onde um dos ambientes mais diversos do país já começava a ganhar "donos" — e não eram os moradores tradicionais dali.
Só anos depois — e muitas vezes sem estrutura suficiente nos órgãos ambientais para fiscalizar e manejar tantas áreas — vieram os instrumentos públicos necessários, como os planos de manejo, os esforços de diálogo e as tentativas de reconstruir pontes com as comunidades locais.
Hoje, no entanto, vemos um movimento preocupante: a tentativa sistemática de reduzir, enfraquecer ou até extinguir unidades de conservação. O fenômeno é tão recorrente que já ganhou uma sigla: PADDD (Protected Area Downgrading, Downsizing, and Degazettement), que se refere ao rebaixamento, redução ou extinção de áreas protegidas.
Um levantamento da InfoAmazonia revela que, entre 2000 e 2024, a legislação destinada à proteção desses territórios sofreu ao menos 60 alterações no Brasil — quase sempre para flexibilizar regras e abrir espaço a novos interesses econômicos. Nesse período, mesmo com a criação de novas áreas protegidas, o país perdeu o equivalente a 57 cidades de São Paulo em áreas originalmente protegidas.
E a pressão não para. No Acre, o PL 6024/2019 tenta transformar o Parque Nacional da Serra do Divisor, uma Unidade de Proteção Integral, em uma Área de Proteção Ambiental (APA) — categoria mais permissiva que pode abrir espaço para desmatamento e exploração econômica. No Mato Grosso, o Parque Estadual Cristalino II também tem seus limites sob ameaça.
Esse fenômeno, porém, não se restringe à Amazônia. No litoral, em Santa Catarina, a APA da Baleia Franca, criada em 2000 para proteger a principal área de reprodução da baleia-franca-austral no Brasil — onde mães e filhotes recém-nascidos são vistos entre julho e novembro —, também está na mira. Cobrindo áreas de Palhoça, Garopaba, Imbituba e Laguna, incluindo a única reserva mundial de surfe do país (na praia da Guarda do Embaú), a APA enfrenta uma tentativa de redução via PL 849/25, que propõe retirar sua parte terrestre — como se o que acontece em terra não tivesse impacto sobre o mar.
A tendência de rebaixamento e redução de áreas protegidas é, na verdade, mundial — e profundamente alinhada aos interesses econômicos. De acordo com o PADDDtracker, plataforma que monitora esses processos em escala global, os Estados Unidos — país que tradicionalmente se orgulhou de seu sistema de parques — estão entre os principais impulsionadores dessa prática. Em um cenário cada vez mais dominado pela lógica do lucro, terras públicas e áreas protegidas se tornam, pouco a pouco, alvos para exploração, seja mineral, madeireira, turística ou imobiliária.
A estratégia é sutil, mas eficiente: mantém-se a fachada de proteção, enquanto se dilui seu conteúdo. As unidades de conservação continuam existindo no papel, preservando índices e estatísticas que dão aparência de compromisso ambiental. Mas, na prática, a flexibilização das regras internas permite o avanço de atividades econômicas antes proibidas. O território permanece desenhado nos mapas — ainda que cada vez mais permeável à lógica de mercado —, enquanto a natureza que deveria estar protegida vai sendo esvaziada, lote a lote.
Proteger a natureza nunca foi uma tarefa simples. Mas desmontar conquistas históricas em nome de ganhos imediatos é um dos maiores paradoxos da nossa era. Ao enfraquecer as áreas protegidas, abrimos mão não apenas de biodiversidade, mas de estabilidade climática, qualidade de vida e, ironicamente, da própria base que sustenta a economia a longo prazo. Em nome de um lucro de curto prazo, plantamos crises que serão cada vez mais difíceis — e custosas — de resolver.
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