Quedas ao andar a fizeram descobrir doença: 'Fiquei sem falar e sem comer'

Marcely Oliveira, 24, foi diagnosticada com depressão após a morte de sua afilhada aos dois meses de vida. Tratada com acompanhamento psiquiátrico, ela perdeu peso e o apetite, só queria ficar em casa e deitada.

Mas, quando a falta de coordenação motora apareceu, no final de 2017, a mãe suspeitou de algo a mais.

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"Ela caía muito para trás, tinha dificuldade para andar. Fiquei preocupada, porque não sabia o que estava acontecendo", diz Vilma Cristina de Oliveira, 40.

Exames de sangue indicavam alterações no fígado, mas sem confirmação do que seria. Os sintomas pioraram até que a jovem ficou acamada, sem falar e passou a se alimentar por meio de sonda.

"Foi muito difícil, porque eu tinha uma vida ativa, muito calma, tranquila. Estava noiva", diz Marcely, que já tinha um imóvel e se casaria em breve. "Me senti indefesa, porque não falava, não comia e dependia da minha mãe."

Marcely perdeu os movimentos, a fala e se alimentava por sonda
Marcely perdeu os movimentos, a fala e se alimentava por sonda Imagem: Arquivo pessoal

Por indicação, a família procurou um médico em Santos, na região onde mora, que suspeitou da doença de Wilson, uma condição genética rara caracterizada pelo acúmulo de cobre no organismo.

Diagnóstico e tratamento

Com exames específicos, Marcely foi diagnosticada com a doença em 2019. Um deles foi para detectar os anéis de Kayser-Fleischer nos olhos, que são círculos dourados ou esverdeados ao redor da córnea, devido à deposição do cobre na região. Ressonância magnética, exame de sangue e dosagem de cobre na urina complementaram a investigação.

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Vilma diz que "foi um baque muito grande" ver a filha acamada por uma doença de que nunca tinham ouvido falar. "Assim que descobri, entrei nas redes sociais e encontrei grupo de pessoas com doença de Wilson, que foi essencial para minha vida."

Com apoio virtual, da família e de amigos, ela foi entendendo e lidando melhor com a condição.

Marcely passou a tomar um medicamento específico para a doença e a fazer fisioterapia. No primeiro momento, a jovem piorou, mas com o tempo viu melhora e uma recuperação notável.

Artes marciais também ajudam Marcely na recuperação motora
Artes marciais também ajudam Marcely na recuperação motora Imagem: Arquivo pessoal

Foi maravilhoso, porque ninguém esperava. Não recuperei tudo, mas hoje consigo ajudar minha mãe em casa, fazer comida. Também faço judô há um ano e caratê há dois anos.
Marcely Oliveira

Marcely agora sonha em ser obstetra. "Meu maior sonho é dar uma casa para minha mãe."

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A família chegou a fazer uma vaquinha para custear o tratamento. "Quando ela ficou doente, a primeira coisa que fiz foi abandonar o serviço para cuidar da minha família", diz Vilma. Aos poucos, elas conseguiram cadeira de rodas, equipamento de sonda, produtos de higiene, fraldas e alimentos.

Atualmente, Marcely toma 11 comprimidos por dia para tratar a doença rara e complicações. Para evitar o acúmulo de cobre, a dieta deve ser moderada em alimentos ricos no mineral, mas hoje, com nível adequado, não há restrições severas.

Vilma confia nos sonhos da filha como impulsionadores. "Ela ainda não tem chance de ir a consultas sozinha, a responsabilidade de ficar sozinha em casa, tem muitas limitações, mas nada impede de ter os sonhos."

Entenda a doença

O cobre atua na produção de energia, na formação dos glóbulos vermelhos, dos ossos, do tecido conjuntivo e ajuda a proteger as células dos radicais livres. Seu excesso é eliminado pelo fígado na bile, mas, na doença de Wilson, um defeito genético impede o processo, fazendo com que se acumule no órgão. Os danos incluem hepatite grave e cirrose.

Quando o fígado fica sobrecarregado, o cobre vai para a corrente sanguínea, podendo levar a uma anemia, e afeta diversos órgãos, especialmente o cérebro. Ali, o mineral se deposita em regiões específicas que vão comprometer a mobilidade, os movimentos e a fala, e doenças psiquiátricas também podem ocorrer. Salivação, tremores e rigidez são outros sintomas.

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As manifestações são muito heterogêneas. Mesmo dentro de uma mesma família, dois irmãos com a mesma mutação podem ter quadros totalmente distintos.
Marta Mitiko Deguti, hepatologista e gastroenterologista, assistente do serviço de gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Pode haver dificuldade de identificar os sintomas na adolescência, fase em que as pessoas ficam mais retraídas e podem ter alteração de humor. Um alerta é para a mudança no tamanho da letra escrita, que fica menor, e dificuldades na escola, além de se atentar a alterações no fígado em pessoas com menos de 40 anos.

Claro que a gente não vai sair pesquisando doença de Wilson em todo adolescente que fica mais fechado, tem queda no rendimento escolar ou muda a caligrafia, mas conforme isso se prolonga e tem alguma forma mais diferente de uma alteração habitual, deve ser considerado, lembrado e pesquisado.
Marta Mitiko Deguti, hepatologista e gastroenterologista

A doença hereditária ocorre quando a pessoa herda uma mutação do pai e outra da mãe. "Quem tem a mutação só de um lado é tida como portadora. Por isso, os pais são pessoas saudáveis, que não sabem nem imaginam que têm essa mutação", diz a médica. Segundo ela, o risco é maior quando existe o casamento entre parentes próximos. "Mas existem também casos que são totalmente um acaso."

O tratamento é feito com medicamentos de uso diário, em duas linhas: um que estimula a eliminação do cobre pela urina e outro que bloqueia a absorção intestinal do cobre e protege o organismo de seu excesso. Em situações extremas, o transplante de fígado é necessário.

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