'Ele só goza com pornografia': problema é evidente, mas pouco conversado

Ler resumo da notícia
Outro dia, num café entre amigas, uma delas comentou, meio rindo, meio constrangida: "Eu acho que meu parceiro tá mais interessado em pornô do que em mim." O silêncio foi imediato. Não era a primeira vez que eu ouvia algo assim. Nos atendimentos, nas conversas, nos relatos, a pornografia aparece — às vezes como fantasia, às vezes como refúgio, às vezes como obstáculo.
Não se trata de demonizar o desejo, nem de moralizar o prazer. Mas é impossível ignorar que, para algumas pessoas, o consumo de pornografia pode se transformar numa espécie de prisão invisível: quanto mais se tenta sair, mais difícil parece ser. A ciência tem se debruçado sobre esse tema com cada vez mais atenção, tentando entender o que há por trás do chamado uso problemático de pornografia (UPP).
Três estudos recentes ajudam a pintar um retrato mais claro — e complexo — desse fenômeno.
Um deles analisou os sintomas de abstinência em pessoas que tentaram reduzir ou parar o consumo a partir da revisão de 14 estudos publicados. Entre mais de 30 mil participantes, muitos relataram desde ansiedade, irritabilidade e insônia, até sintomas físicos como tremores e dores de cabeça.
Não se trata apenas de vontade, mas de um desconforto real que, segundo os autores, pode lembrar o que se vê em outros tipos de vícios comportamentais, como o uso de substâncias.
Outra pesquisa, focada no perfil clínico do UPP, encontrou algo ainda mais intrigante: muitos homens relataram desempenho sexual melhor com pornografia do que com parceiros reais. Mais excitação, orgasmos mais fáceis, menos disfunções.
Isso levanta um alerta: o uso contínuo e solitário da pornografia pode estar moldando — e até prejudicando — a resposta sexual em relações afetivas.
Ainda que quase metade dos participantes relatasse dificuldades na cama com parceiros, isso por si só não foi um bom preditor da gravidade do problema. O que realmente pesava era o quanto o sexo com pornografia parecia mais fácil e satisfatório do que o sexo a dois.
E quando o prazer vira dor, a busca por ajuda se torna essencial. A terceira pesquisa fez uma revisão sistemática das intervenções terapêuticas para tratar o UPP. O resultado? Ainda estamos engatinhando.
A maioria dos estudos analisados era frágil do ponto de vista metodológico, mas alguns caminhos mostram promessa. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), principalmente em versões mais recentes, e a Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT), foram as que apresentaram melhores resultados. O uso de medicamentos como a naltrexona também apareceu como alternativa, ainda que pouco explorada. Por outro lado, tratamentos online e de autoajuda, embora acessíveis, tiveram baixa adesão.
O recado dos cientistas é claro: o tema ainda é novo e carente de pesquisas mais robustas, mas não pode ser ignorado. O UPP não é apenas uma questão de moralidade ou autocontrole. Ele envolve fatores emocionais, neurológicos e culturais que precisam ser compreendidos e tratados com responsabilidade.
Talvez o maior desafio seja esse: como construir uma sexualidade saudável, num cenário onde estímulos intensos estão sempre à disposição e onde o silêncio sobre prazer e desejo ainda impera nas escolas, nas famílias, e até em muitos processos terapêuticos e atendimentos de saúde?
Fica a provocação: estamos educando as pessoas para viver o prazer de forma autônoma e consciente — ou apenas empurrando o problema para debaixo do 'tapete digital'?
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.